Em Maio de 2019 haverá eleições europeias, mas nem os problemas nem as soluções para a Europa vão aparecer nessa ocasião. O dia das eleições para o Parlamento Europeu vai servir para medir o pulso aos europeus — entre outras coisas, perceber quantos populistas e radicais são eleitos — mas a lista de preocupações actual é bem mais longa do que o que ficará à mostra então.

A discussão sobre a Europa passa, nestes dias, pela própria questão da viabilidade da União Europeia (UE). Os procedimentos contra a Polónia e a Hungria, mas eventualmente também a Roménia (e qualquer dia acrescenta-se Malta), levantam um problema de fundo: há Estados Membros que se estivessem em processo de adesão seriam recusados. Isto pode querer dizer que a adesão foi prematura, ou que os valores que reputamos de fundamentais não estão enraizados por ali, definitiva ou transitoriamente.

Acontece que mesmo essa explicação não explica tudo, já que o problema não é só no Leste. Em Itália, Áustria, Alemanha e França, cada uma sendo um caso diferente, também há uma população crescente que se revê em ideias incompatíveis com os princípios fundamentais da União Europeia. Tudo isto são, sobretudo, ameaças que vêm quando a direita distante (far-right é uma boa definição) chega ao poder, ou quase. O que parece indicar que o problema é a ascensão dessa “extrema-direita”. Isso, porém, é mais uma consequência do que uma causa. Além de que à esquerda não faltam problemas, igualmente. Em França, Itália, na Alemanha (menos), e até na Suécia, para dar alguns exemplos, a esquerda “normal”, a social-democracia europeia está em enorme crise, sendo substituída pelo vazio ou pela versão mais radicalizada e extremada do socialismo.

Há, aliás, um tema por explorar a esse propósito. Talvez a falência dos partidos comunistas (França, Itália podem apontar neste sentido e, a contrario, Portugal) tenha retirado aos desiludidos do sistema uma oferta política que, nunca tendo sido pró-ocidental, capitalista, democrática, não era, ainda assim, tão populista como o que entretanto surgiu. Nem se aproximava do poder, até porque a maioria os via, e vê, como “o inimigo”. É uma tese que está por explorar e compreender. Seja como for, a social-democracia, em sentido europeu e não nacional, afastada do poder nestes casos todos, está irrelevante. A sua substituta fala com raiva do capitalismo, do Ocidente, da economia de mercado, dos sucessos que temos. Fala de causas que são minoritárias como sendo a essência dos problemas e a prova de um sistema todo ele corrompido, desactualizado e inútil. Quando chegam ao poder, porém, são mais pragmáticos que programáticos (o Syriza, na Grécia, é um bom exemplo). Mas, pelo caminho, acicatam todos os que se revêm nas tradições que, uma atrás de outra, querem desmantelar. O que ajuda a que uma direita tradicionalista, mais conservadora, se vá acantonando e crescendo.

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O reflexo disto nas próximas eleições europeias é uma enorme incógnita. Os socialistas europeus deverão ser substituídos na função de número dois e parceiro da grande coligação europeia pelos liberais do grupo ALDE, com quem Macron (agora reduzido a um sobrevivente) fará campanha europeia. Só que na Alemanha, que tem sido o motor disto tudo, há uma grande coligação. Irá a CDU trair a aliança com o SPD e tratar os socialistas europeus com a irrelevância que os resultados eleitorais previsíveis sugerem merecer (como se costumava fazer com os liberais)? Ou a grande coligação na Alemanha terá sempre de se manter em Bruxelas? E o peso dos Liberais será, também, o peso da França de Macron? Uma nova grande coligação? Pelo caminho, há que esperar para ver se os populistas têm, mesmo, um grande resultado e se, além disso, se conseguem agrupar no Parlamento Europeu e ser influentes. É que, importa não esquecer, a partida do UKIP lhes tira bastantes deputados. E há muitas incompatibilidades entre eles, o que dificulta a formação de grupos parlamentares coerentes.

Depois há o resto, as políticas propriamente ditas, que estão por trás de toda esta discussão. As migrações, a digitalização e a nova economia, a globalização (já não apenas por causa da deslocalização, mas por causa das importações (não só da China) e o poder próprio e influência de países como (de novo) a China e a Rússia. A Leste há uma percepção contraditória: por um lado, nunca se esqueceram que a ameaça soviética era, também, ou sobretudo, russa. Mas há algum fascínio, mesmo nos que seriam anti-Rússia, pelo poder que o regime russo sabe exercer. E, ao mesmo tempo, medo. O que aconteceu na Geórgia e na Ucrânia pode acontecer nos Bálticos. E, no limite, podia voltar um dia a chegar à Polónia, à República Checa, e por aí fora.

A desconfiança da Rússia, o medo da Rússia, é justificado pela convicção – com provas ou indícios – de que há interferência nos processos políticos e eleitorais europeus. E falta quem faça voz grossa a Moscovo. Sem uma aliança ocidental forte – completamente posta em causa pela presidência Trump, tanto pela forma como trata os aliados europeus como pelas suspeitas quanto a como tem, pelo menos, admiração pelo exercício de poder de Putin -, a Rússia sabe que fará o que quiser ou, pelo menos, muito do que quiser. Incluindo fazer passear submarinos pelo Atlântico. Ninguém vai reagir. E ao mesmo tempo que a aliança ocidental se vai desfazendo, na Europa fala-se de um exército europeu. Sem o Reino Unido, o atlantista de sempre. Um exército europeu, sem RU, com França e Alemanha, sem os Estados Unidos da América, mete medo a quem? Se não é para meter medo, serve para quê, exactamente? E a consequência de integrar a defesa europeia é qual? Nunca mais haver guerra, ou nunca mais haver defesa e segurança nacionais?

Aparentemente, o que atrai nos movimentos populistas é que eles dizem que têm respostas para os medos. Desde logo, dos imigrantes. Um medo exagero, mas explicável. É feio, mas fazer de conta que não se percebem algumas coisas sobre isto é um enorme erro: foi gente percebida como “de fora (da tradição cultural e religiosa) da Europa ” que fez os atentados de Madrid, Londres, Paris, Bruxelas, Nice, e por aí fora. Dizer que eles são franceses, belgas, ingleses, não ajuda nem um bocadinho. Pelo contrário. Para quem já formou uma opinião, isso prova exactamente o ponto: não deviam ter vindo (eles, os pais, ou sequer os avós), porque nunca se integram, nem se querem integrar. O que quem pensa assim quer é que se fechem as fronteiras, se rejeite qualquer tipo de multiculturalismo, se recuse tudo o que seja parecido com aceitar a convivência com gente diferente “de nós”. E, eventualmente, se deportem uns quantos a eito. Ao mesmo tempo que se diz, mas aí com razoabilidade, que se “eles”  não querem comer porco, não comam, mas não se chegue ao absurdo de proibir as escolas públicas belgas de servir bacon. E para o medo do que é feito de fora, dizem: fechem-se fronteiras e reduza-se o comércio.

Os chineses farão sempre mais barato, e não seremos todos start-ups da nova economia. Dizer a quem vai perder empregos que o Schumpeter é que sabia, que a destruição é criadora, que a revolução digital vai fazer novos empregos, não está a resultar. Compreensivelmente, aliás. Eles não os vêem. Os populistas de esquerda dizem, importe-se menos (feche-se a porta ao que vem de países que não respeitam os direitos sociais, ambientais e por aí fora), os de direita dizem isso e acrescentam que se deve, também, fechar a porta aos que vêm de lá trabalhar para cá por menos. Juntos, criam um coro de desiludidos do presente, gente com medo que vota em qualquer promessa de solução.

Qual tem sido a resposta dos partidos tradicionais? Recordar que a Europa é a construção mais bonita da humanidade, que trouxe a paz, a prosperidade, a democracia. Tudo isso é muito bom, mas está provado que sofremos muito mais pelo que perdemos (ou tememos perder) do que nos satisfazemos pelo que ganhamos (ou esperamos ganhar). A derrota (e o medo) é muito mais amarga do que a vitória é doce.

Voltando a coisas mais práticas, o que é que a Europa tem feito pelos europeus?

Salvou os países em crise, com ajuda dos que estavam melhor, mesmo sendo mais pobres (o exemplo dos reformados estónios que emprestaram para pagar as (melhores) reformas dos gregos é o mais repetido em Bruxelas). O resultado, porém, é que os resgatados dizem que foram explorados, e os que resgataram também. Ninguém, dos dois lados da discussão, diz alto que uns e outros ficaram melhor e que a solidariedade, afinal, também é pragmática e mutuamente benéfica.

Construiu uma sociedade onde é muito melhor viver do que em quase todos os outros lugares do Mundo. À excepção do distante Japão, do idílico Canadá, das tranquilas e prósperas Austrália e Nova Zelândia, e dos Estados Unidos (para quem gosta de sociedades competitivas e onde a responsabilidade é mais individual que colectiva), não há nenhum sítio no mundo onde se diga que é melhor viver. Nem há um modelo alternativo, ao contrário do que acontecia durante a Guerra Fria. Essa, aliás, pode ser parte do problema. Vivemos, de um modo geral, bem e muito melhor que quase todos os outros. Só que nem todos vivemos assim, e há tanto de medo como de falta de vontade de celebrar esse modo de vida (ao contrário do que acontecia durante a Guerra Fria, quando o Ocidente tinha propaganda e acreditava nela). Hoje em dia não o fazemos. E em breve, já sem o Reino Unido que, apesar de tudo, tem mais orgulho no Ocidente do que os outros Estados Membros todos juntos, ainda faremos menos a apologia do nosso mundo.

A saída dos britânicos, além de ser um óbvio problema para eles, também é para nós. E não é só porque nos fartamos de importar e exportar de lá para cá e de cá para lá. Ou porque eles fazem muito turismo. É, também, porque os britânicos, sempre acusados de não estarem sinceramente alinhados com o “projecto europeu”, eram, com frequência, os únicos a fazer contrapeso à Alemanha, a defender os princípios do mercado livre (fossem eles conservadores ou trabalhistas de tipo Blair ou Brown), do comércio internacional e menos intromissão europeia no governo dos países. Com eles, vão-se os campeões da subsidiariedade. A Europa fica mais fraca no mundo, menos liberal internamente e mais integrada. Enquanto os próprios, desorientados e enredados no que possa ser o seu novo destino, não têm sido parceiros úteis na NATO, no G7, nem no mundo em geral. Exactamente quando o mundo está, de novo, mais perigoso. Aqui ao lado, já só podemos fazer de conta que a Turquia é um regime aceitável e um aliado fiável. E, mais importante, nem sequer sabemos o que devemos fazer de conta que pensamos sobre a China. Assumimos que é uma potência com uma estratégia ofensiva, ou fazemos de conta que é apenas a reconfiguração do multilateralismo em curso? Seja qual for a resposta, não parece que tenhamos uma ideia muito concreta.

Qual é, então, o futuro da Europa? Discutir se vai haver mais integração? Se, para haver mais partilha de responsabilidades (nomeadamente nas questões orçamentais), estamos dispostos a partilhar soberania e deixar que os nossos orçamentos sejam geridos (ou vistoriados) pelos restantes parceiros europeus; se a partilha do risco nos sistemas bancários obriga a uma harmonização tão forçada que acabará com toda a diversidade para só haver grandes players europeus? Sendo que o que é verdade no sistema financeiro é intuído nos outros sectores. A integração, da energia às telecoms, acabará, fatalmente, por criar grandes actores europeus e arrumar com os pequenos nacionais que serão uma arqueologia como o comércio local do século passado? E toda essa integração levará, fatalmente, à crescente irrelevância dos Estados e dos seus governos? O Semestre europeu, que parece uma coisa inócua, sem dentes, incapaz de ser consequente (ver-se-á se com Itália e França ganha músculo ou prova a sua cobardia perante os grandes) pode ser, na verdade, uma das maiores transformações da União Europeia.

A ideia de que o orçamento, o principal instrumento da política nacional, deve estar sujeito a uma avaliação dos pares, provar a sua compatibilidade com as regras europeias e respeitar recomendações sobre quais as melhores políticas — seja lá qual for a cor do governo em exercício — significa que a política nacional é sobretudo uma declinação da europeia, e a europeia é tecnicamente superior e insensível às oscilações ideológicas nos Estados Membros. Lá se vai a política, enquanto mercado de opções distintas mas compatíveis, abrindo caminho a opções radicalmente diferentes e irreconciliáveis.

A União Económica e Monetária, a União Bancária, a União Energética, são os novos mercados únicos europeus, são a peça seguinte de um modelo de Europa completa, integral. Um modelo cheio de virtudes. E de consequências. Mercados mais integrados, concorrência regulada, melhores serviços, mais defesa dos consumidores, menos diversidade. Se é isso que os europeus querem ou não, não é certo que esteja claro. Mas parece ser certo que, a seguir por onde vamos, é o caminho.

Mas é mesmo isso que os europeus querem? Os europeus — como se fosse possível arrumá-los todos numa categoria — parecem querer coisas razoavelmente incompatíveis. Maior integração, sem perda de soberania; políticos europeus inspiradores e liderança política (da Alemanha), sem que a Alemanha mande na Europa; mais partilha de responsabilidades, sem ter de pagar por elas (ou pagando as multinacionais americanas); resolver o déficit demográfico sem deixar entrar quem é diferente; evitar migrações, mas não gastar tanto a apoiar a vizinhança e os países de origem da imigração; beneficiar da nova economia, sem perder os empregos da velha, com se fosse possível manter o regime das licenças dos taxistas e a concorrência da Uber para sempre; não deixar fugir para os Estados Unidos ou a China os automóveis do futuro, mas castigar a indústria automóvel europeia (como se fosse mais poluente que as outras todas); aumentar o financiamento da inovação sem diminuir o apoio à coesão, à solidariedade e aos campos (tudo isto com menos dinheiro), e por aqui fora.

“A solução” podem ser muitas, provavelmente. O problema é que a Europa está sempre em crise à espera “da solução”. Ao contrário dos países, não corre o risco de falir, mas sim de se desintegrar, de chegar ao fim. É por isso que a “tentação constitucional” (reconfigurar o arranjo institucional) aparece sempre que há um problema novo. E, no entanto, não resolve nada substancial.

A Europa precisa de esperança e de realismo, de quem seja capaz de dizer o que é e não é possível, e que tenha uma ideia de futuro também. Talvez seja melhor encarar a Europa como um caminho em comum, que se faz quando e como se quer, e não como um projecto. A probabilidade de fazer História é menor, mas o risco de ficar para a História é muito menor, também.

Consultor em Assuntos Europeus