1 A rampa deslizante começou mesmo antes de a lei da eutanásia ser lei, como recordei ontem. Vendo, hoje, o filme todo, de trás para a frente, foi uma estratégia ousada: a cada etapa do processo (chumbo inicial em 2018, primeiro acórdão de inconstitucionalidade em 2021, primeiro veto presidencial em 2021 e segundo acórdão em 2023), o movimento dos promotores do processo foi um passo atrás, dois em frente. A lei é significativamente mais ampla do que os textos iniciais, troçando da oposição política e dos juízos de inconstitucionalidade – como se estes se fundassem não em terem ido longe de mais, mas não suficientemente longe…

O escorrega foi ajudado pelo desrespeito do artigo 24.º da Constituição. Bastava ter presente o que dita – a vida humana é inviolável – e, sem ser jurista, aceitar a frase em português comum. Os poderes preferiram fingir que não existe, ou que não diz o que diz. Quando “a vida humana é inviolável” não quer dizer que a vida humana é inviolável, tudo pode dizer o que se queira.

O manejo da linguagem é ferramenta essencial, ainda que recorrendo à fraude. O importante é a eficácia da acção ideológica. A substituição de eutanásia por “morte medicamente assistida” é habilidade para a fazer aceitável. Ah! É um acto médico? Então, não tem problema. A apropriação da expressão é claramente um abuso: sempre houve morte medicamente assistida nos hospitais e no domicílio – excepto em morte imediata, a generalidade dos óbitos acontece com assistência médica e familiar. Nunca a morte medicamente assistida foi proibida, em Portugal ou qualquer país. Mas a expressão “morte medicamente assistida” foi apropriada como manto protector e combustível precioso da rampa deslizante.

Estamos, nesta altura, apenas no princípio da rampa deslizante. Olhando sobretudo à experiência de Países Baixos, Bélgica e Canadá, que partiram de leis semelhantes à lei portuguesa, podemos antecipar próximas etapas da viagem.

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2 O recurso à eutanásia tem continuado a crescer. Nos Países Baixos, que legalizaram a prática em 2002, o último relatório disponível para o ano 2021 indica que os casos de eutanásia e suicídio assistido foram de 7.666, mais 10,5% do que no ano anterior (6.938), correspondendo a 4,5% do total de mortes no mesmo ano. Os grandes números de 2022 apontam novo aumento de casos (agora, mais 13,7% do que no ano anterior), totalizando 8.720 procedimentos – 5,1% de todas as mortes em 2022. Há ainda a notícia de, em 2022, ter havido 29 casais que escolheram morrer em conjunto – em 2021, tinham sido 16.

Na Bélgica, segundo números oficiais relativos a 2022, 2.966 pessoas morreram por meio de eutanásia, correspondendo a 2,5% das mortes na Bélgica no mesmo ano. Comparando com 2021 (2.699 casos), houve um crescimento de 9,9%.

Em 2002, primeiro ano de aplicação da lei nos Países Baixos, houvera 1.882 casos de eutanásia. Em 2022, os 8.720 casos corresponderam a 4,6 vezes mais. Na Bélgica, o primeiro ano completo, 2003, registara 235 casos. Em 2022, os 2.966 casos correspondem a 12,6 vezes mais.

Passando ao Canadá, o histórico é mais recente – a legalização é de 2016 –, mas bastante intenso. A progressão das mortes por eutanásia e suicídio assistido foi esta, segundo relatório oficial: 1.018 (2016), 2.838 (2017), 4.480 (2018), 5.661 (2019), 7.603 (2020) e 10.064 (2021). Aumentaram dez vezes em cinco anos. Em 2021, corresponderam a um aumento de 32,4% face ao ano anterior, representando 3,3% da mortalidade no mesmo ano no Canadá. Projecções não-oficiais apontam que terão subido, em 2022, para 13.500, o que representará um incremento de 33,8% face a 2021.

Nos Países Baixos, em 2005, três anos depois da lei que legalizou a eutanásia, esta passou a ser permitida para menores. Hoje, pode ser praticada a bebés com menos de 1 ano de idade, com doença terminal, e a menores com 12 anos ou mais, com autorização dos pais até aos 16 anos de idade. Já em 2023, o governo neerlandês, sob pressão dos médicos, acaba de estender esta possibilidade a crianças de 1 a 12 anos de idade, sofrendo de doença terminal.

Na Bélgica, a eutanásia a menores de qualquer idade é legal desde 2014, sendo a prática limitada. O primeiro caso foi noticiado em 2016 – um menor com 17 anos. No relatório oficial do biénio 2016/17, são referidos mais dois casos de crianças com 9 e 11 anos. Houve mais um em 2019, não os havendo em 2020, 2021 e 2022.

No Canadá, foi anunciado que as crianças com 12 anos ou mais poderão, em breve, requerer a eutanásia, tendo a comissão parlamentar recomendado que pudesse ser aplicada aos menores sem consentimento dos pais. Está também em trâmite uma reforma da lei para permitir que doentes mentais possam pedir a eutanásia, tendo sido noticiado oficialmente que a entrada em vigor foi adiada para 17 de Março de 2024.

Na Bélgica e nos Países Baixos, a aplicação a doenças mentais, psiquiátricas e do sistema nervoso, incluindo demências, já é possível há alguns anos. O caso da velhinha de Mariahoeve, sobre que já escrevi, foi uma pedra sobre o assunto. Foi um caso controverso em 2016, com uma doente de Alzheimer. Contra o protocolo, a médica adormeceu-a enganosamente, antes de iniciar o procedimento. Quando ia administrar o fármaco letal, a velhinha reagiu, apesar de sedada. A médica pediu ao marido e à filha da doente para a segurarem, a fim de lhe aplicar a dose. O caso gerou processos pelas comissões de revisão e, depois, por dever de ofício do Ministério Público, questionando o procedimento e sobre se a velhinha dera efectivamente o consentimento legal. O julgamento foi em 2019. O Ministério Público pediu publicamente a absolvição. O Tribunal absolveu a médica. Um ano depois, em 2020, na esteira deste caso, o Supremo Tribunal aligeirou as exigências quanto ao consentimento, nos casos de demência. E os comités de revisão vieram alterar o protocolo, autorizando que doentes de demência sejam adormecidos antes de iniciar a eutanásia. Nunca mais haverá casos como o da velhinha de Mariahoeve. Não porque não haja, mas porque o que estava mal passou a estar bem.

3 No Canadá, casos sociais recentes geraram controvérsia. Michael Fraser, pobre e doente, pediu a eutanásia e obteve-a. Conta Andrew Philips, colunista do Toronto Star, na peça de 18.nov.2022: Estamos todos implicados na decisão de Michael Fraser de morrer. A história foi esta: “Fraser decidiu pôr termo à sua vida aos 55 anos. Não era um doente terminal – não conseguia pagar a renda, nem sair de casa. A situação de Fraser era terrivelmente triste: estava doente, era pobre e estava sozinho. Há cinco semanas que não saía à rua porque não conseguia subir escadas e não havia elevador no prédio onde morava. Tinha decidido que já não valia a pena viver.” O seu médico, Dr. Navindra Persaud, confessou que se sentiu “dividido” quanto a participar na morte de Fraser. Declarou que “a pobreza está a empurrar pessoas para a morte medicamente assistida… Penso que o facto de ter problemas em pagar a renda tornava-lhe, com certeza, mais difícil estar neste mundo”. Um filósofo.

Em Abril de 2022, na Spectator, Yuan Yi Zhu perguntava em título: Por que está o Canadá a eutanasiar os pobres? O artigo é muito instrutivo. Conta um exemplo arrepiante, anterior à lei de 2020, onde nasceu o eufemismo legal “MAiD” (“Medical Assistance in Dying”), a moda de onde importámos a nossa “morte medicamente assistida”: “Um homem com uma doença neurodegenerativa testemunhou perante o Parlamento que enfermeiros e um especialista em ética médica do hospital tentaram coagi-lo a suicidar-se, ameaçando-o de o levar à falência com custos adicionais, ou a expulsá-lo do hospital, e negando-lhe água durante 20 dias.” Yuan conta, depois, três casos de eutanásia por pobreza, qual deles o mais interpelante. E contextualiza de novo: no processo de adopção da Bill C-7, “o responsável parlamentar pelo Orçamento nacional publicou um relatório sobre as reduções de custos que geraria: enquanto o antigo regime MAiD poupava 86,9 milhões de dólares por ano, o projeto de lei C-7 criaria poupanças líquidas adicionais de 62 milhões de dólares por ano. Os cuidados de saúde, em particular para os que sofrem de doenças crónicas, são caros; mas o suicídio assistido custa ao contribuinte apenas 2.327 dólares por ‘caso’.” Yuan Yi Zhu termina com esta acusação: “Os meios de comunicação social canadianos, ricamente subsidiados, têm manifestado, com algumas honrosas excepções, muito pouca curiosidade acerca do assassínio social aberto de cidadãos num dos países mais ricos do mundo. Talvez, tal como muitos médicos, os jornalistas receiem ser acusados de “não progressistas” por questionarem a nova cultura da morte, uma acusação fatal nos círculos educados.”

Dois dos três casos da Spectator foram relatados, em Maio de 2022, por Leyland Cecco para o The Guardian. O primeiro, em Fevereiro, foi o de Sofia, de 51 anos: “Depois de ter pedido, sem sucesso, uma habitação a preços acessíveis para ajudar a aliviar o seu problema de saúde crónico, uma mulher canadiana pôs termo à sua vida em Fevereiro ao abrigo das leis de suicídio assistido do país.” O segundo, outra mulher, Denise, que “também pediu para pôr termo à sua vida depois de não conseguir encontrar uma habitação adequada e de lutar para sobreviver com o subsídio de invalidez.” O artigo ouve, porém, comentários de uma médica e praticante da MAiD, uma professora de bioética e uma professora de Direito, que todas relativizam os problemas de pobreza e de habitação nestes casos, vendo essas questões como “apenas” condições de contexto. Sofia, antes de morrer, deixara um vídeo em que acusa: “O governo vê-me como lixo dispensável, uma queixinhas, uma inútil e uma chata”.

O Canadá está a caminho de uma legislação das mais permissivas, aponta Alex To, do South China Morning Post, acusando: “há também um princípio político-filosófico básico em jogo, que é frequentemente pressuposto mas raramente articulado abertamente. Num regime liberal-democrático ocidental e altamente secularizado, o individualismo e a soberania do indivíduo ocupam uma posição privilegiada no topo da hierarquia dos valores e dos direitos. (…) Devemos ser livres de escolher não só como viver, mas também quando morrer. Em princípio, essa é a liberdade máxima do individualismo secularizado. Na prática, já há casos de pessoas sem-abrigo no Canadá que consideram a MAiD como uma opção, num país onde um em cada dois sem-abrigo sofre de alguma forma de doença mental, de acordo com a Associação Canadiana de Saúde Mental.”

Ainda no Canadá, uma sondagem recente, em 23.mai.2023, veio revelar que “mais de um quarto dos canadianos considera que ser-se sem-abrigo e a pobreza são razões para o suicídio assistido”.

Nos Países Baixos, em Fevereiro de 2020, voltou a debater-se a pílula letal, de aquisição e administração livres, a partir dos 70 anos de idade, pelos cansados de viver. É a ideia lançada há quarenta anos por Hugh Drion, juiz do Supremo Tribunal, professor de Direito. Falecido em 2004, com 86 anos, deixou como legado a “pílula Drion”, o remédio mortal que, volta e meia, ressurge em debate. Pelo estado da arte, não custa admitir que virá a ser aprovada.

Do Japão chega outra ideia, que Chie Hayakawa, realizadora do filme Plan 75, explica ao The Guardian: um programa de suicídio voluntário que está “longe de ser impossível”. Com a população envelhecida e solitária do Japão num ponto de crise, “Fumio Kishida, primeiro-ministro, afirmou recentemente que o envelhecimento da população representa um «risco urgente para a sociedade».” Ao anunciar “a criação de uma nova agência governamental para lidar com a questão, afirmou: «O Japão está à beira de saber se podemos continuar a funcionar como sociedade».” O filme Plan 75, que entrou nos cinemas britânicos em Maio, propõe “uma política que a agência poderia experimentar: a eutanásia voluntária para as pessoas com mais de 75 anos. Em vez de ser um fardo, um incómodo, um estorvo que consome recursos, qualquer pessoa com 75 anos pode simplesmente colocar-se nas mãos calmas e eficientes do Estado e desaparecer sem dor.” E pronto! Já está.

4 No nosso caso, o artigo 24.º da Constituição destinava-se a impedir tudo isto e movimentos quejandos, pelo instrumento próprio do Direito: erigir a vida humana e a sua inviolabilidade como valor mais alto da ordem jurídica. Com ele, estávamos garantidos. Assim, tendo sido espezinhado e ignorado, não garante coisa nenhuma. É como for.

A nossa realidade não deixará de ser como a destes países. A simples passagem da lei, com violação material da Constituição, produziu de imediato um relaxamento moral nas convicções colectivas da sociedade. E a sua entrada em vigor ainda mais. Se os promotores conseguirem o envolvimento da classe médica, o relaxe será ainda maior pelo conhecido efeito do “senhor doutor” e da “senhora doutora”. Como o caso da velhinha de Mariahoeve ensina, quando estivermos cercados e acossados e “sendo um fardo, um incómodo, um estorvo”, provavelmente não poderemos contar com o médico, nem com a família, nem com o Ministério Público, nem com o tribunal, nem com o público. Totalmente sós.

Veremos a eutanásia, ternamente chamada de “MMA” (morte medicamente assistida), ser alargada a crianças de todas as idades, com e sem consentimento parental, assim como a doentes com demência ou psicoses graves, dementes, deprimidos crónicos, doentes mentais dos tipos mais diversos, talvez a toxicodependentes e alcoólicos. Seremos interpelados por casos de suicídio assistido por factores determinantes de pobreza. Nalguns casos, sem nos darmos conta, a mágica MMA levar-nos-á da legalização da morte a pedido para a da morte sem ser a pedido, mas sempre “medicamente”. Em crise demográfica aguda, tal como o Japão, veremos a asfixia social apertar-se, a pouco e pouco, em torno dos idosos e dos mais pobres. Acima dos 70 anos, sentir-se-á crescente desconforto, num coro surdo: “Que estás aqui a fazer?” A pílula Drion ou o Plan 75, marcarão um limiar etário que pesa socialmente. E há, não esqueçamos, as razões financeiras: um suicídio assistido custa “só” 2.300 dólares, muito menos que o custo de um doente crónico ou de qualquer dependente do orçamento social. Só poderão estar seguros os mais ricos e os com família mais alargada coesa.

Tudo, é claro, em nome da solidariedade e do socialismo.

A evolução acontecerá por acção política das forças pró-eutanásia, mas também por não as haver realmente contra. As lideranças são, em geral, fracas. Há forças que querem os votos dos eleitores contra a eutanásia, mas não lutam em substância contra esta – o que é grande desvantagem nos confrontos que são sobretudo culturais, antes de serem políticos. Parece instalado um consentimento tácito e difuso. Tendo estas leis estado em aprovação em Espanha e em Portugal, não houve um eurodeputado português ou espanhol que questionasse a situação na Bélgica e nos Países Baixos, chamando a atenção para os aspectos mais graves e desenhando alianças no quadro europeu. A evolução de outros países também empurra na direcção de uma civilização de interrupção social da vida. É a caravana onde nos fizeram entrar.