1 Deixemo-nos de rodeios. A única questão importante no Decreto da eutanásia votado pela Assembleia da República e pendente para se tornar lei, ou não, é se estamos de acordo, ou não, com que os médicos, sob determinadas condições, sejam chamados a matar seus doentes ou velhos. É o único problema e é grande. Se fosse um procedimento de saúde, não haveria problema. Mas não. É um procedimento de morte. Em rigor, é uma execução. Não estou de acordo. Não estou de acordo que a lei autorize a execução de pessoas, mesmo a seu pedido. Menos ainda que se mandate os médicos para executar doentes ou idosos.

O Decreto para a eutanásia vem embrulhado em mentira. É sintomático. É para aí que todos tendemos a fugir, quando queremos fazer algo que é mau: necessitamos de disfarçar a realidade para procurar torná-la aceitável. Tornar aceitável aos nossos próprios olhos e aos dos outros aquilo que, no nosso íntimo, sabemos inaceitável.

Realmente é uma lei homicida: a lei do homicídio a pedido, nos expressos termos da epígrafe do artigo 134.º do Código Penal, apenas retocado. Não se pense, portanto, que exagero. Esse (o homicídio) é o problema. Se fosse um acto médico, realmente um tratamento, nenhuma dúvida. O problema – ético, jurídico e político – é o homicídio ou a ajuda ao suicídio. Esta é a verdade que tem de ser encarada.

A maior mentira, a mais perigosa, é negar a rampa deslizante. A lei não ficará restrita aos casos nela aparentemente delimitados, mas ampliar-se-á de modo inexorável a muitos outros, sob a pressão social e o progressivo relaxamento ético. Não se ficará pelo “a pedido”. Muitos deputados e deputadas, senão todos, sabem isto ou tinham obrigação de o saber. Uns estarão talvez enganados, mas também há quem pretenda que nos deixemos enganar, apenas para abrir a porta.

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A experiência de outros países não deixa dúvida, com saliência, na Europa, para a Bélgica e a extrema degradação dos Países Baixos. Até é simples perceber os mecanismos morais do relaxe e como eles operam por si naturalmente, passo a passo, depois de aberta a porta com a gazua do “a pedido”. É inevitável.

2 Outra mentira é a forma fantasiosa como tenta fugir-se à palavra “matar”. Se fosse coisa boa, não seria preciso fugir à palavra: a ideia por detrás da eutanásia é matar por compaixão, como a um animal velho ou doente. É a ideia de a morte ser melhor do que o sofrimento, ao ponto de ser bom matar por amor. A ideia é essa: o amor que mata. Sim, o amor que não gosta de dizer que mata, mas mata. A equação é esta: para exercer compaixão, é preciso matar. Se a vítima morresse por si, não haveria compaixão. Para manifestar compaixão é preciso agir; e agir é matar. Mas a palavra “matar” incomoda. Lembro um debate televisivo em que a deputada Isabel Moreira (pró-eutanásia) se incomodou com a intervenção serena de Teresa Melo Ribeiro (anti-eutanásia) e enervou-se com a palavra “matar”. De forma autoritária, pôs termo ao debate.

A fórmula que ficou no Decreto parlamentar é: “antecipação da morte medicamente assistida não punível”. A suave fórmula oficial dos factos alternativos. É como dizer que a estrada não é uma estrada, mas “pavimento asfaltado para circulação de veículos automotores”. Ou, afastados a forca, a decapitação, o fuzilamento e a cadeira eléctrica e generalizada a injecção letal, dizer que não há pena de morte, se recorrermos à “antecipação da morte medicamente assistida sob impulso judicial” – sempre, é claro, com garantia do princípio do contraditório. Com este achado, pode até violar-se o art.º 24.º, n.º 2 da Constituição («Em caso algum haverá pena de morte»), que ninguém dará por isso. Garantirão, com cara de pau, que não se trata da aberração medieval da pena de morte, mas da modernidade higiénica do “impulso judicial para morte antecipada medicamente assistida”.

Para ter a certeza, fui reler velhos dicionários escolares. O Cândido de Figueiredo diz: “matar” – “causar a morte”; “morrer” – “deixar de viver, falecer, finar-se”. A eutanásia é a primeira acção, não a segunda ocorrência. O Porto Editora repete estes significados e acrescenta idênticos. Não se desse o caso de sofrermos de subdesenvolvimento linguístico, fui verificar no Larousse: “tuer”“faire mourir”; “mourir”“cesser de vivre”. E, no Advanced Learner’s de Oxford: “kill” = “put to death, cause the death of”; “die” = “come to the end of life; cease to live”. Não há dúvida: eutanásia é matar. Há acção para provocar a morte, para fazer morrer.

O texto da Assembleia é de extremo cuidado na cosmética vocabular, para tentar que não se dê conta da gravidade do que é. Esmerada linguagem de normalização para fornecer aos apoiantes a ferramenta linguística indispensável a negarem o que todos sabem e afirmarem com desembaraço a verdade alternativa.

3 A lei da eutanásia, nos Países Baixos, não é, no essencial, muito diferente do texto votado na Assembleia da República: a eutanásia tem de resultar do pedido voluntário e bem ponderado por parte do próprio; este deve estar em sofrimento prolongado e insuportável; deve ter sido informado pelo médico da situação em que se encontra e ter formado a convicção de não haver outra solução razoável para o seu caso; deve discutir com o médico a eutanásia no momento de avançar; e ser ouvida a opinião conforme de um segundo médico independente.

É assim desde 2002, o que não tem impedido o alargamento progressivo dos casos a que se aplica. Os Países Baixos são um dos casos mais conhecidos da “slippery slope” (rampa deslizante), que provocou a dissidência de especialistas que participaram na aplicação inicial da lei, sendo, hoje, dos críticos e denunciantes mais vigorosos. É o caso de Berna van Baarsen, em 2018, divergindo da ampliação da eutanásia em casos de demência; e, com mais destaque e amplitude de motivos, do Prof. Theo Boer, desde 2015. ‎Boer, professor universitário de ética, afirmou em 2017: “No início, 98% dos casos de eutanásia eram doentes em estado terminal com talvez dias de vida. Agora, essa percentagem caiu para 70%.‎” É a “rampa” que explica principalmente o significativo aumento de casos, de 1.882 para 6.361, entre os anos de 2002 e 2019. Neste último ano, a morte provocada foi responsável por 4,2% das mortes nos Países Baixos (em 2002, tinham sido 1,3%). Aplicando esta estatística à mortalidade de 2019 em Portugal, 4,2% significaria 4.700 eutanásias num ano, 13 por dia.

4 Houve um caso recente em Mariahoeve (Haia) que ilustra bem o fenómeno da rampa deslizante. Já escrevi sobre este caso, muito impressivo. A vítima foi uma velhinha desconhecida. Sabemos que tinha 74 anos, vivia na região de Haia e sofria de Alzheimer. O seu nome e o dia exacto da sua morte não são públicos. Sabemos apenas que a eutanásia foi executada em Abril de 2016, depois do dia 15. O caso foi referido na imprensa internacional. Eu segui o The Guardian e pude ler também a decisão disciplinar da autoridade sanitária regional de Haia.

A senhora teve diagnóstico de Alzheimer em 2012. Traumatizada pela vivência de história semelhante com a mãe, redigiu logo, embora não na devida forma, uma disposição para «fazer uso do direito legal a eutanásia voluntária» em determinadas circunstâncias, reservando confirmar essa vontade quando chegasse a altura. A demência foi avançando e, em 2015, reviu ainda a declaração: fica praticamente igual, mas explicita pretender a eutanásia «quando considere que o momento é o adequado». A deterioração continuou e, ao longo do último ano de vida, estão documentadas manifestações contraditórias de vontade: ora querer morrer, ora não, «ainda não».

A médica acaba por marcar a data para a eutanásia, no completo desconhecimento da doente, informando somente a família e outros profissionais de saúde envolvidos. Nesse dia aprazado para morrer, conta a queixa (no processo disciplinar que seria aberto) que “a doente não expressou de modo algum um desejo de morte; pelo contrário, fez até planos para sair para jantar com a família nessa mesma noite.”

A médica apresenta-se em casa da doente, com o pretexto de ir tomar o pequeno-almoço com esta. Estão presentes familiares: o marido, a filha e um cunhado, marido da irmã. Nessa altura, administra, dissimuladamente, um tranquilizante forte no café da doente, a fim de a adormecer, o que havia combinado com o marido e a filha, mas não com a doente. Como, ao fim de 45 minutos, ainda não adormecera profundamente, a médica reforçou a dose por via subcutânea. Minutos depois, administrou, por via endovenosa, uma dose forte de potente barbitúrico. A doente, aí, despertou e reagiu. A médica pediu, então, à família que a agarrasse e segurasse, para poder concluir a administração do barbitúrico. Passado algum tempo, vendo que “a doente já não respondia à chamada, não respirava e não tinha reflexos nas pestanas”, a médica administrou-lhe ainda dosagem alta de uma droga que paralisa os músculos respiratórios. Sete minutos mais tarde, declarou a morte pela verificação das pupilas.

A velhinha desconhecida foi morta assim. Há factos que contrariam a lei holandesa em pontos essenciais: não soube que ia morrer, não pôde discutir com a médica a decisão da eutanásia, não expressou a vontade actual, foi posta em estado de inconsciência sem o ter pedido, reagiu durante a execução e a sua reacção foi reprimida. Em suma, foi enganada. Foi morta. Foi morta “por amor”, “por amor da família”.

Na altura, a lei holandesa já ia em 14 anos de rampa deslizante. Continuou rampa abaixo.

5 Este caso da velhinha desconhecida deu origem a processos: um na autoridade sanitária e outro judicial. O primeiro, terminou em Julho de 2018, quando a médica já se reformara: julgou-a culpada de prática errada e aplicou uma sanção, aliás suave – repreensão.

Quanto ao processo judicial, o Ministério Público saiu a público a declarar publicamente, em Agosto de 2019, poucas semanas antes do julgamento, que “a médica agiu com a melhor das intenções”. Em Setembro de 2019, o tribunal decidiu absolver a médica, considerando que a declaração escrita pela doente era suficiente – objectivamente, “reviu” a lei. O tribunal aparentemente descartou os factos estabelecidos no processo disciplinar no âmbito da administração da saúde (não é conhecida a sentença do tribunal). Na altura em que o tribunal pronunciou o veredicto, o público, na sala de audiências, rompeu em aplausos. Em Abril de 2020, já com a pandemia a fustigar, o Supremo aproveitou este caso para generalizar a eutanásia aos casos de demência avançada, aligeirando, assim, os requisitos da lei escrita. E, em Novembro de 2020, na sequência desta decisão do Supremo, foi o Comité de Revisão da Eutanásia a alterar o seu entendimento anterior, conforme à lei, e a fixar que, afinal, está correcta a prática de adormecer doentes com demência avançada, a fim de lhes aplicar a eutanásia sem saberem.

A rampa deslizante dos Países Baixos foi acontecendo por estes deslizes na prática médica, judiciária e administrativa – e que deslizes! Mas, no plano legislativo, anunciam-se mais novidades rampa abaixo. Em 2016, começou um debate político e legislativo para estender a eutanásia àqueles que sentem que “a vida está completa”, embora a atenciosa ministra Edith Schippers tenha esclarecido que é só para velhos. Em 2019 e em 2020, foi lançada a iniciativa de ser introduzia a pílula do suicídio para os maiores de 70 anos. E, Outubro passado, o governo, mostrando que o aligeiramento não é apenas para velhinhas dementes, anunciou ser favorável à introdução da eutanásia para crianças menores de 12 anos – como já sucede na Bélgica.

É ficção enganosa afirmar que em Portugal a rampa deslizante não acontecerá. Claro que acontecerá. Ela está escrita na lei e nos seus mecanismos. Aberta a porta, será impossível fechá-la. Haverá muitas velhinhas e velhinhos desconhecidos, a merecer o seu túmulo em muitas terras de Portugal. Como no soldado desconhecido, não saberemos os seus nomes, mas saberemos as suas histórias.

A velhinha de Mariahoeve foi enganada ao acreditar no seu “direito legal a eutanásia voluntária” e ao escrever uma declaração para eutanásia com ressalvas. Ninguém atendeu às ressalvas, nem sequer o tribunal, que não ligou nem à lei escrita, nem à declaração escrita.

Ficou totalmente só quando a “mataram por amor”. A médica? Não a protegeu. A família? Só a abraçou para garantir a dose final de barbitúricos. O Ministério Público? Pôs-se publicamente do lado da médica contra a vítima. O tribunal? Sentenciou não ver nada de mal. O público? Aplaudiu a absolvição. O Supremo? Fez do caso lei nova. O Comité de Revisão? Reviu o código de conduta para considerar certo o que era errado: agora, está bem adormecer velhinhos dementes para os matar sem saberem. O Estado holandês? Nada faz, a não ser programar leis mais permissivas. O que vale, hoje, na Holanda, uma velhinha demente com Alzheimer? Zero.

6 A Assembleia põe-nos nesse trajecto. Há dias, foi aqui publicado o artigo “A eutanásia na Península Ibérica”, da autoria de Dantas Rodrigues, Sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados. Apoia o Decreto da “ajuda na morte” – sempre os factos alternativos – e, entrando na eutanásia, descreve-a assim: “Primeiro, uma anestesia geral aplicada por via endovenosa (injetada numa veia), o doente fica em estado de sono induzido que o impede de sentir dor, e, depois, os barbitúricos, um composto químico mortífero à base de numerosos hipnóticos e sedativos. Em breves minutos a respiração extingue-se e o coração cessa de bater.”

A narrativa arrepiou-me. Agoniei-me. Impressiona não só a frieza do texto, mas a semelhança com a execução da nossa velhinha. Na descrição, só faltam os familiares para segurar o moribundo, caso reaja e estrebuche.

Eu não quero os médicos portugueses a fazer isto. Não quero os enfermeiros ou outros profissionais de saúde a matar doentes ou idosos. Se querem mesmo fazê-lo, arranjem quem o faça e saibamos quem – não os nossos médicos e enfermeiros. Protejam-se as profissões médicas. Não quero os estudantes de medicina ou enfermagem a aprenderem a matar pessoas. Os médicos têm doze anos de formação superior, para o serem. Ninguém precisa de tantos anos de estudo para matar. Não quero os estudantes de direito a aprendê-lo em Medicina Legal. Não quero estudantes para profissões de saúde ou jurídicas em Portugal como passageiros da rampa deslizante, candidatos a executar a morte ou a manejar a novilíngua que embrulha a mentira. Não pode ser.