Parece existir um consenso em relação ao debate que precedeu a votação sobre a eutanásia. Foi feito com dignidade e elevação. Sem ataques pessoais, violência verbal, o que infelizmente é mais frequente no parlamento do que desejaríamos. Não houve manobras, de última hora, em relação às votações como aconteceu no caso do IVA da eletricidade. Os deputados assumiram o seu sentido de voto, quer os sujeitos a disciplina partidária, quer os que tinham liberdade de voto (PS e PSD).  Isto dá alguma esperança na melhoria do funcionamento da nossa democracia, embora não acredito que se possa generalizar a outros diplomas (1).O caso da legalização da eutanásia, é particular, pois a base eleitoral dos dois maiores partidos está dividida em relação a este assunto, razão que pode explicar o tema não ter sido inserido nos respetivos programas.

Há muitas matérias, em política, em que não há certo ou errado, o que serve o interesse público e o que não serve. As pessoas têm diferentes concepções filosóficas, éticas e morais. Têm previsões ou crenças distintas sobre o impacto previsível de uma lei. Aquilo que uma sociedade democrática deve fazer é entender num dado momento do tempo, qual a  concepção dominante, e tentar prever, com a evidência empírica existente, as diferentes implicações de uma lei ser ou não aprovada. Para isso é necessária adequada deliberação pública.

Pessoalmente concordo com o seguinte princípio: “Aceitação da liberdade pessoal: há certos assuntos pessoais sobre os quais cada pessoa deve ser livre de decidir o que vai acontecer, e na sequência dessas escolhas, o que quer que ele ou ela pensa que é melhor, deve ser tomado como melhor para a sociedade como um todo, independentemente do que os outros pensem.(2) Acho que a decisão sobre a continuação ou abreviação da vida, em situações de doença terminal e extremo sofrimento é um desses casos. Ao contrário do que muitos argumentaram, este princípio, não é apenas compaginável com uma concepção individualista da sociedade, defendida por muitos liberais, mas também por abordagens comunitaristas. A nossa identidade, os nossos valores estão obviamente influenciados pelos nossos amigos, a família, a comunidade e a sociedade a que pertencemos. Idealmente se, e quando, estivermos numa situação terminal, os que nos estão mais próximos acompanhar-nos-ão. Do mesmo modo a nossa decisão pessoal afetará a família e os que cuidam de nós com quem estabelecemos laços de afecto. Quando o doente, a família, e a comunidade médica avaliam do mesmo modo a situação daquele, e as possíveis alternativas que se lhe oferecem, na prática não há dificuldades. Elas surgem se quem sofre de uma doença terminal tem uma avaliação diferente (da sua dor e das perspetivas de sofrimento vindouras) da avaliação feita por família ou médicos. A lei atual implicitamente dá ao médico o poder de decidir (por exemplo se se justifica ou não dar mais morfina sabendo que isso alivia a dor, mas antecipará a morte do doente). Aquilo que os projetos ora aprovados dizem é que deve prevalecer a vontade, reiterada, e consciente do doente.

A morte voluntária, consentida e consensual já se pratica em Portugal. Muitos de nós já presenciámos pelo menos uma situação em que uma dose mais forte de morfina abreviou a vida de um familiar para aliviar o seu sofrimento. A intenção, neste caso, é aliviar o sofrimento e é considerado um recomendado ato médico, com a designação de ortotanásia. Esta está algures entre a distanásia (a obstinação terapêutica de prolongamento da vida com acrescido sofrimento num doente em que a morte é eminente) e a eutanásia. O que estes projetos significam é alguma transferência do poder de decisão dos médicos para o doente, sem os dispensar.

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Entrámos na fase da especialidade em que haverá tempo para incorporar a resposta a problemas que já foram identificados, nomeadamente aqui no Observador. Há vários argumentos contra o uso do referendo para dirimir esta questão, aliás bem expostos aqui por Rui Tavares. Mesmo que a petição para referendo dê entrada e seja discutida na forma de projeto de resolução, de acordo com a lei do referendo (ver nº 8 do artº 15-A/98), não será aprovada. Até o PCP que votou contra os projetos de lei, votaria, neste caso contra o referendo. Por outro lado, eventuais projetos de lei no mesmo sentido que dêem entrada sobre este tópico não é provável que sejam agendados. O PSD já disse que não agendaria, mesmo que algum deputado do PSD submeta um projeto de lei nesse sentido. Os deputados únicos não podem fazer agendamentos (sem ser por arrastamento). A única possibilidade é o CDS. Quanto ao Presidente custa-me a crer que faça um veto político. Não apenas pelo histórico das suas declarações, mas porque uma maioria de 128 votos é expressiva e sabe de antemão que seria reconfirmada. Resta o Tribunal Constitucional. A questão poderá ser suscitada, mas à luz do direito constitucional comparado é difícil que sejam suscitadas questões de fundo.

O mais fácil foi feito, a aprovação dos projetos de lei. Estou convicto que a maioria parlamentar, representa efetivamente a maioria do país. O mais difícil, redigir uma lei equilibrada que compatilize a auto-determinação do doente com um adequado envolvimento médico e familiar é agora da responsabilidade dos deputados ouvindo a sociedade. Ao governo compete, em paralelo, o dever de reforçar os cuidados paliativos públicos para que a qualidade da despedida de cada um dependa menos da sua condição económica.   

PS (1) O caso da eutanásia será abordado no livro, que estou a escrever, intitulado “A Democracia em Portugal: Bloqueios, Riscos e Oportunidades”.

PS (2) Esta formulação do princípio da liberdade pessoal deve-se a Amartya Sem, Nóbel da Economia num dos seus artigos mais influentes , ver Sen, A. (1976) “Liberty, Unanimity and Rights”,Economica, 43, pg.  217-245