A lei da eutanásia, aprovada esta semana, após um longo e muito participado processo na Assembleia da República, irá certamente ainda novamente ao Tribunal Constitucional, ou pelo envio preventivo do Presidente da Republica, ou pelo envio sucessivo da iniciativa de deputados que estão contra o diploma.

O debate sobre a despenalização da eutanásia tem estado ligado à discussão sobre as carências de cuidados paliativos, sobretudo pelos que criticam esta iniciativa legislativa Inequivocamente, Portugal tem carências significativas em relação aos cidadãos que, ou por terem idade avançada, ou por terem doenças terminais, ou por não terem suficiente autonomia, necessitam desses cuidados. Há, assim, muito a fazer neste campo. Também aqui as desigualdades sociais se manifestam de forma gritante. Mas este é um debate diferente.

Já tive ocasião de escrever aqui no Observador a minha posição favorável à despenalização da eutanásia, obviamente assegurando que o processo seja devidamente acompanhado. Uma decisão sobre a vida ou a morte deve assentar no princípio da liberdade individual, da autonomia e da autodeterminação, em situações muito particulares de elevado sofrimento pessoal. Desejavelmente, doente, família, amigos e médicos devem estar alinhados na apreciação da situação. Mas em caso de divergência, entre doente e médico, sobre o melhor curso a seguir, deve prevalecer a opinião de quem sofre, de quem suporta excessiva dor.

Imagino que a posição maioritária (mas longe de ser unânime) quer da Ordem dos Médicos, quer da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) não seja idêntica à minha. A CNECV disse num dos seus pareceres: “O sofrimento intolerável é uma vivência subjetiva, mas o juízo acerca das situações em que aquele não é passível de ser aliviado depende de um conhecimento médico que naturalmente advém de terceiras pessoas. Assim, nunca existe um contexto nuclear e autónomo para validar um pedido de morte, porquanto a expressão mais genuína da vontade própria está sempre imbuída de vários fatores e intervenientes (interpessoais e sociais), que interferem e condicionam necessariamente a decisão.” (Parecer 109/CNECV/2020 sobre o Projeto de Lei n.º 104/XIV/1 – PS) Que o sofrimento é subjetivo e que o juízo depende do conhecimento médico estamos de acordo. Já discordo que o doente deixe de existir enquanto núcleo de personalidade, individualidade, autonomia, responsabilidade, quando na posse de todas as suas faculdades mentais e de informação médica. Mais ainda discordo que o juízo e a decisão final sejam do médico e não do doente.

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A minha opinião pessoal não é relevante, mas é importante a decisão, largamente maioritária, dos deputados da Assembleia da República, após todas as audiências e audições efetuadas e todos os pareceres recebidos. Obviamente, o texto final aprovado não pode refletir a totalidade dos contributos recebidos, sobretudo de quem se opõe à despenalização da morte medicamente assistida, mas vários foram contemplados. Há agora uma definição clara dos conceitos vertidos na lei, introduziram-se vários mecanismos de triagem antes da decisão final, com um papel relevante para o acompanhamento médico (médico “orientador, médico especialista e eventualmente médico psiquiatra). Prevê-se claramente a possibilidade de objeção de consciência para os profissionais de saúde.  Há, ainda, uma Comissão de Verificação e Avaliação, composta por representantes do Conselho Superior de Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público, das Ordens de Enfermeiros e Médicos e da CNECV, que pode dar parecer favorável ou desfavorável.

É, porém, preocupante que o articulado agora aprovado possa levar a que a lei, passando o crivo do Constitucional, possa não ser implementada. O que sucede se instituições representadas na Comissão de Avaliação e Verificação (CAV), por exemplo as Ordens, não nomearem os seus representantes? Ou se a CAV não emitir um parecer no prazo de cinco dias? Algo que mereceria ter sido melhor acautelado.

Neste processo democrático tudo parece estar a decorrer dentro das normas constitucionais, com eventual recurso ao Constitucional e respeitando a larga maioria democrática que nesta Assembleia da República aprovou o diploma. Os que estão contra, e são democratas, como Pedro Passos Coelho aqui no Observador, defendem que os partidos que se opõem a esta lei, devem afirmar já a sua oposição, esperando que uma nova maioria política no futuro possa reverter esta decisão.

Depois há os não democratas, que afirmam ir boicotar a implementação da lei. É o caso do bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Miguel Guimarães (em fim de mandato) que afirmou em carta, há já dois anos, que a OM se recusaria a indicar ou nomear qualquer médico para qualquer comissão que a legislação preveja. Em resumo, para o bastonário, o código deontológico dos médicos, está acima da lei e por isso sente legitimidade para não a cumprir.

Em democracia, é normal haver maiorias e minorias. O que não é desejável é reverter direitos adquiridos largamente sufragados e não é normal que dirigentes de corporações profissionais digam que não cumprem a lei.