Antes de mais é preciso saber do que estamos a falar. A eutanásia, voluntária ou involuntária, é um acto da sociedade, são os outros, um médico em geral, que nos matam. O suicídio, assistido ou não, é um acto de liberdade individual na medida em que será a pessoa a infligir a sua morte. Convém perceber bem as diferenças, na medida em que se pode defender a morte não natural como um acto de liberdade individual no suicídio, mas não na eutanásia.

A Holanda foi o primeiro país a despenalizar quer a eutanásia quer o suicídio assistido, em 2002, após pelo menos duas décadas de debate. É ali que deveríamos ir buscar alguns ensinamentos sobre os erros cometidos, o que aparentemente alguém já fez. Theo Boer, professor de ética na Universidade de Teologia de Kampen, diz neste longo artigo do The Guardian que quando mostra as estatísticas holandesas em Portugal ou na Islândia alerta que esse será o ponto em que Portugal estará daqui a duas décadas.

Que estatísticas são essas? Uma subida vertiginosa de casos com a escolha a recair mais pela eutanásia do que pelo suicídio assistido. A excepção ocorreu em 2018. De acordo com o Comité holandês para a Eutanásia, em 2018 houve 6.126 notificações, 4% do número de pessoas que morreram nesse ano, registando-se uma quebra relativamente a 2017 (6.585, ou 4,4%), como se pode ler no seu relatório. A maioria dos casos é de cancro e na esmagadora maioria (96%) a vida foi terminada por eutanásia. O suicídio assistido representou 3,4%. Este peso relativo tem-se mantido ao longo dos anos, com as pessoas a preferirem a eutanásia ao suicídio.

A decisão de exercer o direito de escolher morrer, enquanto valor de liberdade individual, não é naturalmente fácil, já que as pessoas, pelos dados da Holanda, preferem entregar o acto aos outros, à sociedade. E é aqui que se começam a levantar os problemas da nossa imagem como sociedade.

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A liberdade individual é um valor que se sobrepõe a muitos valores, especialmente para aqueles que se consideram liberais e, desse ponto de vista, têm razões para defender, não a eutanásia, mas sim o suicídio assistido. António Barreto, em “Morte na primeira pessoa”, escreve sobre este tema no Público.

A eutanásia, enquanto acto da sociedade, afecta inevitavelmente o colectivo que construímos, baseado em valores de solidariedade e humanismo, que remonta ao século XIX e que nos afastou dos grupos que consideramos mais primitivos. O Estado, com as suas origens na Alemanha do século XIX pelas mãos do chanceler Bismark, estabeleceu um contrato social com os cidadãos. Em troca de impostos e de contribuições, o Estado compromete-se a apoiar-nos nos tempos difíceis da nossa vida, no desemprego, na doença e na velhice.

Despenalizar a eutanásia é violar esse contrato social entre os cidadãos e o Estado, é escolher a eficiência como o faziam (ou fazem) as sociedades sem essa rede social, em fases de pobreza extrema, ou as tribos de caçadores-recolectores.

Há um filme, A Balada de Narayama, que tem a sua primeira versão em 1958 e uma segunda em 1983, que retrata o drama de um filho que leva a mãe para morrer na montanha sagrada, respeitando a regra da aldeia onde se vivia em pobreza extrema. Onde não se podia alimentar uma boca que nada produzia.

Mas há igualmente o relato da tribo Aché, que viveu no Paraguai até 1960, e que se pode ler no livro “Sapiens” de Yuval Noah Harari. Os antropólogos que estudaram essa tribo nómada de caçadores recolectores contam que os idosos, quando se tornavam um fardo, eram mortos pelos jovens, pelas costas, com uma machadada na cabeça.

O Estado social foi construído para nos afastar da pressão individualista da luta pela sobrevivência que dramaticamente se expõe naqueles dois exemplos. Despenalizar a eutanásia é, inevitavelmente, ferir o Estado social. Com a eutanásia estamos a escolher, implicitamente, libertar a sociedade (e a família) da responsabilidade de cuidar da pessoa, estamos a dizer-lhe que é um fardo e pode (ou deve) por isso escolher que a matem. Diferente é dar à pessoa a liberdade de se suicidar, de exercer a sua liberdade individual solitariamente, mesmo que isso seja uma dor maior para quem fica.

Do ponto de vista da economia, estamos a fazer escolhas que explicitam valores que não correspondem à imagem da sociedade que queremos ter e que construímos. Essas escolhas, quer se queira quer não, têm efeitos financeiros e empresariais. A ciência económica é isto mesmo, estuda a forma como se fazem escolhas. E essas escolhas reflectem valores. Que, neste caso concreto, acabam por privilegiar a eficiência – uma pessoa doente não produz, gasta – em detrimento da equidade e de valores éticos e morais.

Mesmo não sendo essa a razão e o argumento fundamental que leva à defesa da despenalização da eutanásia, as escolhas têm efeitos financeiros e empresariais.

Em sociedades envelhecidas como as nossas, despenalizar a eutanásia é abrir espaço para gerar poupanças no Serviço Nacional de Saúde e, mesmo que marginalmente, na segurança social por via das pensões ou dos subsídios de doença.

Os custos associados aos doentes terminais aumentam significativamente por via dos tratamentos, da medicação e da utilização de recursos hospitalares. No caso português, estes custos são fundamentalmente suportados pelo Estado por via do SNS, ainda que possam igualmente ser parcialmente imputados às seguradoras até a um determinado limite e, obviamente, para as pessoas que os têm. As próprias famílias podem ser afectadas financeiramente.

A eutanásia induzirá poupanças que não são, contudo, directas nem líquidas. Primeiro porque nem todas as pessoas com doenças terminais optarão pela morte assistida e depois porque a criação de todo um sistema de concretização da eutanásia terá custos. Uma análise sistematizada, embora para o caso norte-americano, pode ser lida, por exemplo, no artigo “The Ethical and Economic Concerns of Physician Assisted Suicide”. É, contudo, de admitir que as poupanças sejam superiores aos custos.

Um outro argumento, mais económico do que financeiro, é que esses recursos poupados podem ser usados para tratar melhor as pessoas com perspectivas de cura. Estamos assim perante um aumento da eficiência “à Pareto”: com recursos escassos e limitados, matar quem não tem cura liberta recursos para quem tem cura.

Se a eficiência aumenta, o mesmo não se pode dizer tão claramente em relação à igualdade. Os críticos da eutanásia argumentam que serão as pessoas de grupos mais desfavorecidos que acabarão por escolher a eutanásia. É difícil perceber se assim será embora, à partida, as pessoas com maiores recursos tenham a possibilidade de aceder a cuidados paliativos de maior qualidade, que lhes permitem ter uma morte digna e sem pressões para escolherem morrer.

Finalmente temos em interligação com tudo isto os negócios que se podem gerar em torno da eutanásia, o mais importante dos quais é o do turismo, como acontece na Suíça. Mas isso só acontecerá se, tal como nesse país, a legislação permitir a eutanásia a não nacionais. E, claro, como já se referiu, os potenciais ganhos das seguradoras.

Nesta breve resenha de argumentos é difícil perceber como é que a esquerda defende mais do que a direita a eutanásia.

Teoricamente, a esquerda defende um Estado Social forte e a submissão dos direitos individuais ao interesse da sociedade, um quadro de pensamento que não se enquadra nem na eutanásia nem no suicídio assistido. Deste ponto de vista, o PCP é o que tem a posição mais coerente, ao colocar-se contra a eutanásia.

Os partidos à direita que não se considerem liberais deveriam seguir o mesmo caminho que o PCP ou defenderem apenas o suicídio assistido – pelo valor da liberdade individual — mas não a eutanásia – pelo envolvimento que o Estado tem na decisão, ao avaliar se a pessoa é ou não elegível.

O tema é difícil e toca fundo nos nossos valores, como percebemos. Nunca deveria ser decidido à pressa e muito menos sem que os partidos se tivessem posicionado sobre a eutanásia quando se apresentaram a eleições. Estamos perante o risco de institucionalizar a desumanização, com argumentos de liberdade individual, quando na realidade o Estado se está a meter no assunto, pelo menos no caso da eutanásia. Valia a pena, no mínimo, estudar melhor o que se passa na Holanda.