1 Há um mês, logo após a aprovação da lei da eutanásia na Assembleia da República, escrevi um artigo criticando a má sorte do artigo 24.º, n.º 1 da Constituição (“A vida humana é inviolável.”), que jaz morto e enterrado. Intitulei-o de Requiem pelo artigo 24.º . É um facto que poderá ter terríveis consequências.
Rever a Constituição para remover esse obstáculo e, a seguir, fazer a lei que aprovaram não é a mesma coisa que aprovarem esta lei, fazendo de conta que o obstáculo não estava lá. Se se revisse a Constituição para acomodar o propósito legislativo, alguma coisa nova teria ficado na Constituição com valor de garantia. Assim, deixando-se a Constituição como está, mas ignorando-se o que lá está, ficámos sem a mais leve garantia em matéria de vida humana.
Quanto ao direito à vida e à Constituição, entrámos em regime fora-da-lei. No futuro, pode imperar o arbítrio, segundo as concepções que, a cada momento, o poder estabelecido subscrever e impuser. A porta ficou aberta. Deixou de haver limite constitucional – o que lá está deixou de ter préstimo. O processo legislativo mostrou falta de respeito pelo comando “a vida humana é inviolável” e não houve sequer o cuidado de o ponderar. Esse respeito não voltará, a menos que seja expressamente resgatado. Triunfou a jurisprudência da indiferença.
2 O meu artigo suscitou, em publicações electrónicas, alguns comentários reveladores, que tomo como representativos de uma visão diferente da minha.
O leitor Gil Teixeira comentou-me: “Estimado, vou começar a rezar para que um dia não seja confrontado com um estado de saúde pessoal terminal, sofrendo lancinantemente, e queira antecipar a partida com recurso a um método não doloroso.”
Bento Guerra (que creio não ser nome verdadeiro) escreveu: “Manipulam e deturpam o sentido da lei, que é o de descriminalizar os profissionais que intervêm no abreviar da morte, a dar-se antes que o Deus deles “decida”. Com gente desta, uma sociedade não progride.”
E Jorge Lopes argumentou: “100% favorável à Eutanásia e/ou ao suicídio assistido em determinadas situações… Ninguém com esta lei vai contra o direito à vida, apenas dá a possibilidade a quem esteja numa situação de doença incurável e mortal no curto prazo de pôr termo ao seu sofrimento de forma confortável ao morrer sem sofrimento e num momento pelo próprio decidido.”
Todos os três acreditam que a lei vai ao encontro do pedido de alguém que, em sofrimento tremendo, com doença fatal e a morte à vista, quer a antecipação da morte. O primeiro: “estado de saúde pessoal terminal, sofrendo lancinantemente, e queira antecipar a partida”. O segundo: “descriminalizar os profissionais que intervêm no abreviar da morte”. E o terceiro: “situação de doença incurável e mortal no curto prazo de pôr termo ao seu sofrimento”.
Vêem-se as consequências de esta lei não ser uma lei democrática. O PS, tendo a lei em apreciação desde 2015 a 2023, cometeu a proeza de nunca a levar à apreciação democrática, fosse nas eleições legislativas (em que sempre a esconderam), fosse em referendo (que sempre rejeitaram). Não surpreende, por isso, que os cidadãos – mesmo entre os mais atentos e informados – não conheçam o que foi realmente aprovado e se prepara para entrar em vigor.
Agora, com o texto da lei já publicado (Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio), podemos falar da letra de lei e não de projectos, conjecturas, intenções, narrativas. O essencial da previsão legal é a “morte (…) por decisão da própria pessoa, (…) em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” A lei deixou de ter qualquer foco na doença fatal, afastou a necessidade de proximidade da morte e enxotou em absoluto as menções à “antecipação da morte”.
Aqueles cidadãos que me interpelaram têm ainda no espírito a previsão do projecto de lei do PS em 2018: “a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, (…) em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” Nada a ver com a lei de hoje.
Era ainda a previsão que, no início de 2021, constava do primeiro texto aprovado pela Assembleia da República: “antecipação da morte (…) por decisão da própria pessoa, (…) em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” Todo o procedimento era ainda designado de “antecipação da morte”, ocorrendo em quadro de “sofrimento intolerável” e, em caso de doença, devia ser “incurável e fatal”.
Mas já não era exactamente a previsão no segundo texto aprovado, no final de 2021: “morte (…) por decisão da própria pessoa, (…) em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” Mantinha-se, nos casos de doença, a previsão de ser “incurável e fatal”, mas haviam sumido a ideia e as palavras de “antecipação da morte”.
Em 2023, na lei publicada, desapareceu o resto: além de não estarmos num quadro de morte à vista (e, muito menos, iminente), a doença passou a ser “grave e incurável”, sem necessidade de ser “fatal”. Por seu turno, o sofrimento foi também sucessivamente atenuado: em 2018, “extremo”; em 2021, “intolerável”; na lei de 2023, “de grande intensidade”.
As pessoas que pensam como Gil Teixeira, Bento Guerra e Jorge Lopes, estão enganadas, porque foram enganadas por quem fez esta lei. Esta não se destina só a doentes terminais, em sofrimento lancinante, que peçam a antecipação da morte. A lei já nem foca sequer estas situações, abrindo a administração da morte a uma gama de casos muito mais vasta.
3 As perguntas que se mantêm são estas: Alguém ouviu uma explicação de porquê e para quê se abandonou a ideia central de “antecipação da morte”? Alguém ouviu por que razão se afastou a previsão de “doença fatal”? Alguém ouviu os fundamentos para, consecutivamente, se atenuar o grau do sofrimento? A resposta é simples: ninguém ouviu, porque ninguém explicou. Nunca esqueçamos o essencial: esta lei não é uma lei democrática. Tudo pôde ser feito sem discutir com os eleitores e, portanto, sem necessidade de explicar o essencial.
O emblema parlamentar deste processo é a Assembleia da República, em plenário, ter dedicado meia hora para aprovar uma das últimas versões da lei, como contou o Expresso: “a quarta versão da legalização da eutanásia só foi distribuída no Parlamento na quarta-feira e a agenda desta sexta tem 30 minutos para o debate.” Estamos longe da Assembleia da República dos “bons velhos tempos”. Hoje, reina o império das grelhas, que comprime o debate democrático e não autoriza debates alargados, em dois ou três dias, para discussão exaustiva de questões mais profundas, sensível e complexas.
A problemática mais sensível das leis da eutanásia é, como se sabe, a “rampa deslizante”: a primeira lei, mais restrita, abre uma alameda por onde novas leis vão alargando consecutivamente o seu objecto e ampliando o campo de aplicação.
Os promotores desta legislação em Portugal ou negam este risco, ou procuram fugir-lhe. Mas a rampa deslizante é uma dinâmica tão inerente a esta legislação que, mesmo antes de termos lei, os conceitos escorregaram rampa abaixo de 2018 para 2021 e, depois, de 2021 para 2023, como mostrei acima. Teresa de Melo Ribeiro abordou exaustivamente este facto no artigo A eutanásia já está a deslizar pela rampa abaixo e ainda nem a lei viu as trevas do dia e eu também o abordei no artigo A hora da morte. Tratarei da rampa deslizante noutro artigo, amanhã, para vermos o que nos espera.
Aqui, quero chamar a atenção para estarmos num ponto de mudança de civilização. Leis como esta (e outras similares, aprovadas desde o princípio do século no mundo ocidental) indiciam claramente a mudança. Sabemos como a atitude perante a morte, que influencia a atitude perante a vida, e vice-versa, integra o núcleo central dos valores de uma civilização e alimenta os seus tabus. Ora, pela primeira vez na História, colocamos a provocação da morte na linha do que é disponível e a organizar a sua administração pela sociedade e pelo Estado num certo quadro de conveniências. E também pela primeira vez na História, o Estado prescreve e impõe que este serviço é assegurado, não por profissionais específicos, separados da classe médica, mas como prestação médica e dentro do sistema de saúde.
Nunca aconteceu uma mudança tão profunda e tão radical. Em Portugal, acontece porque o artigo 24.º da Constituição foi violado – salvo se os pedidos de fiscalização sucessiva da constitucionalidade da lei surtirem efeito positivo. Noutros países, tem acontecido por decisões políticas e jurídicas do mesmo tipo e, depois, pela dinâmica imparável da rampa deslizante. A nova civilização gera uma nova cultura, que puxa continuamente para diante, cavalgando a disponibilidade sanitária da morte. É a nova resposta para velhos, doentes, acidentados, incapacitados, pobres.
Ainda não conseguimos conhecer tudo da nova civilização. É muito diferente, mesmo radicalmente diferente do que sempre conhecemos. Nunca encarámos um hospital ou uma clínica como um sítio para irmos lá morrer. Nunca olhámos um médico como alguém que nos tira a vida. Nunca encarámos o suicídio como acto que devemos ajudar ou em que devemos ser ajudados. Nunca (ou só muito raramente) fizemos certa a data da morte. E é também muito diferente o quadro de valores dessa nova civilização, de que já se vê alguma coisa. É preciso prestar atenção ao que se passa noutros países, porque é para aí que estamos a ser empurrados.