A cidade de Évora foi eleita no final de 2022 para ser a capital europeia da cultura (CEC) em 2027. A aventura desta cidade do futuro só agora começou, mas a dúvida que mais me assalta neste momento é a seguinte: de que cidade do futuro estamos nós a falar, a cidade centro histórico património da humanidade, a cidade perímetro urbano, a cidade e seus anéis periurbano e suburbano, a cidade-concelho e suas freguesias, a cidade-rede urbana envolvente, a cidade-região CIM do Alentejo Central (CIMAC), a cidade pós-moderna e neo-romântica da Europa cosmopolita?

Ou, de uma perspetiva mais concetual, qual é o conceito de cidade que mais nos deve inspirar, a cidade vertical, compacta, radial e monótona onde domina o imóvel e o automóvel, a cidade-território concelhio que circula pelas freguesias do município modernizando equipamentos e infraestruturas e distribuindo bens e serviços comuns, ou a região-cidade policêntrica, uma rede urbana inteligente alinhada com os princípios do federalismo intermunicipal e as inovações da smartificação do território e com musculo suficiente para enfrentar o tempo das grandes transições – climáticas, energéticas, ecológicas, alimentares, digitais, demográficas, migratórias, laborais, securitárias – que terão impactos devastadores sobre muitos aspetos da nossa vida coletiva e que, por isso, exigem que façamos o rescaling das nossas comunidades locais e regionais mais desprotegidas?

Estamos no início de 2023. Na atual conjuntura, eu diria que Évora CEC 2027 é um excelente pretexto para reconsiderar e recompor a agenda 2030, uma década singular que reúne volumosos recursos financeiros – PT 2020, PT 2030, PRR 2026, Programas Europeus – os quais requerem uma especial exigência no que diz respeito à governação multiníveis e a toda a orgânica nacional e regional de gestão dos fundos europeus. E aqui residem as principais dúvidas no que diz respeito às opções políticas de fundo para esta década. A cidade vai privilegiar o seu centro histórico monumental atualizando, por essa via, a declaração de património mundial de 1986 (1), a cidade vai privilegiar o concelho e o conjunto das suas freguesias e aproveitar para modernizar as suas infraestruturas e equipamentos (2), a cidade vai privilegiar a cooperação interurbana da sua área de influência e constituir aí uma nova rede patrimonial, artística e cultural de prestígio internacional e com impacto no fluxo de visitação (3), a cidade vai privilegiar o seu ecossistema tecnológico e digital, apostar na smartificação do território envolvente e constituir-se numa plataforma colaborativa de excelência para o mundo ibero-americano, por exemplo (4), a cidade vai privilegiar um âmbito e uma escala mais alargados e estender-se à região-cidade do Alentejo Central (CIMAC) e proceder, por essa via, a uma reorganização estrutural das suas redes de infraestruturas e equipamentos, em linha com os princípio de organização do sistema-paisagem, da estrutura ecológica intermunicipal e da geoeconomia dos sistemas de base territorial, bem como, de uma nova distribuição de bens e serviços comuns dos municípios da CIMAC (5), ou a cidade vai privilegiar uma estratégia mais híbrida e eclética procurando maximizar a entrada de fundos europeus, nacionais e estrangeiros atraídos pelas possibilidades oportunidades de investimento oferecidas pela CEC 2027 (6)?

Estas várias opções, importa lembrar, significam outras tantas capitalidades, ou seja, diferentes projeções no espaço e no tempo de se assumir e ser uma capital. Poderá esta capitalidade, com base na cultura, ser projetada para a economia, o ambiente e a sociedade, de tal modo que, no final, a década de 2030, os eborenses e os alentejanos possam dizer que se tratou de uma década abençoada? Não tenho uma resposta para esta geografia sentimental assim formulada. Mergulhemos, então, um pouco na filosofia política desta grande transição de uma pequena cidade, em linha com uma abordagem territorial pela perspetiva das redes.

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Em primeiro lugar, a filosofia política das grandes transições diz-nos que perante tantas externalidades, que não controla, a política não pode ficar acantonada e confinada nos limites territoriais da sua legitimidade eleitoral; os municípios portugueses são demasiado pequenos para lidar com estas externalidades, logo, o federalismo intermunicipal, sob múltiplas formas, é sempre uma opção em aberto, eu diria irrecusável.

Em segundo lugar, uma abordagem territorial pela perspetiva das redes – centralizadas, descentralizadas e distribuídas – indica-nos o caminho a seguir em matéria de cooperação interurbana e de geoeconomia das redes, por exemplo: redes e interligações da economia verde e circular, do ecossistema tecnológico e empresaria, de serviços ambulatórios e cooperação transfronteiriça, das indústrias criativas e culturais; tudo parece aconselhar uma rede policêntrica de cooperação interurbana apoiada em dispositivos colaborativos como as plataformas digitais e a georreferenciação.

Em terceiro lugar, a abordagem pela perspetiva das redes diz-nos que, em todos os casos, é imperioso aumentar a capilaridade entre espaços e territórios, aprimorar a sua inteligência coletiva territorial e adequar a respetiva intensidade-rede; a cidade-região é a cidade urbano-industrial da 1ª modernidade, vertical e radial, periurbana e suburbana, invasiva e discriminatória, a região-cidade é a cidade inteligente e criativa, policêntrica e distribuída, uma rede de pequenas comunidades inteligentes, inclusivas e colaborativas da pós-modernidade e da 2ª ruralidade; ao ator-rede respetivo compete promover as interligações, acertar o passo da intensidade-rede com o envolvimento das comunidades implicadas, usar a inteligência e a imaginação para ligar as pontas soltas da matriz de fluxos e fomentar a capilaridade de um território em busca de sentido.

Em quarto lugar, a abordagem pela perspetiva das redes depende diretamente do investimento feito na smartificação do território; num primeiro nível, a simples otimização de recursos na provisão de serviços públicos, num segundo nível, a criação de um ambiente inteligente na educação-ensino-formação de toda a população, num terceiro nível, a promoção de plataformas digitais made in tendo em vista a criação de uma sociedade local mais participativa e colaborativa, por último, a criação de um ecossistema digital integrado orientado para a estratégia de desenvolvimento territorial da região-cidade envolvente.

Em quinto lugar, a abordagem pela perspetiva das redes depende muito da evolução político-administrativa das próprias comunidades intermunicipais (CIM), em especial, no âmbito da lei nº50/2018 que transfere atribuições e competências para os municípios e as CIM; todavia, para lá desta transferência, importará saber se os municípios, eles próprios, desejam evoluir para um genuíno federalismo intermunicipal, um novo patamar para um governo dos bens comuns e um verdadeiro território-desejado; ora, sobre tudo isto paira ainda uma nuvem espessa e carregada.

Em sexto lugar, a filosofia política da regionalização, agora iniciada com a RCM nº123/2022 de 14 de dezembro e que determina a transferência, partilha e articulação das atribuições dos serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado nas CCDR; iremos assistir a uma interação dinâmica entre os níveis regional (NUTS II) e sub-regional (NUTS III/CIM) com vários arranjos contratuais entre os dois níveis de administração; resta saber se a dinâmica colaborativa entre os dois níveis estará à altura dos grandes desafios e transições desta década ou se vamos, antes, assistir ao emagrecimento das administrações públicas e ao primado da verticalização-digitalização das candidaturas com sede em Lisboa e uma estação nas capitais regionais das CCDR.

Em sétimo lugar, a política de integração europeia é, ainda, uma incógnita por causa da guerra na Ucrânia e a sua linha de rumo até 2030 será determinante para fixar o quadro geral das políticas públicas, em especial, no que diz respeito à união orçamenta e recursos próprios, à formação de dívida conjunta e à comunitarização de novas áreas de integração; acresce que falta ainda à União Europeia uma doutrina regionalista bem estabelecida em matéria de bens comuns e mobilidade transfronteiriça, que abra uma janela de oportunidade para a próxima geração dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT), uma dimensão que Évora CEC 2027 não pode esquecer na sua relação com a fachada peninsular no âmbito da euro-região AAA (Alentejo-Algarve-Andaluzia).

Nota Finais

Ainda não sabemos como se fará o rescaling da governação multiníveis em Portugal ao longo da década e muito menos se assistiremos à transformação das CIM em verdadeiras regiões-cidade. Isto significa que cada opção antes referida terá a sua capitalidade e os seus incumbentes principais e, logo, também, uma taxa de realização diferenciada. Évora CEC 2027 faz parte do PRR 2026 e do PT 2030 e é nesse contexto que uma reflexão estratégica sobre as várias opções de capitalidade faz todo o sentido. Seja como for, parece já claro que o policy-framework de Évora PT 2030 acontecerá entre três níveis de governo e administração: a CCDR (a regionalização funcional em curso), a CIMAC (no quadro das transferências em curso) e o município de Évora, sozinho ou em modo de cooperação interurbana. Fica, igualmente, claro que Évora CEC 27 só produzirá todos os seus efeitos positivos se existir uma forte intensidade-rede com todos os bens e serviços que estruturarão a CIMAC. E para tal basta pensar no que está em jogo com o governo dos comuns da CIMAC: o plano verde intermunicipal, o mix energético e as comunidades locais de energia, o ordenamento florestal e a silvicultura preventiva, o sistema agroalimentar local, o centro partilhado de recursos digitais e as plataformas de inovação, o cluster de indústrias criativas e culturais, a oferta de serviços comuns ambulatórios, a gestão agrupada multiprodutos regionais, as áreas integradas de gestão paisagística, os bancos de solos e os baldios, os condomínios de aldeias e a gestão da 2ª ruralidade. No final da década, não nos surpreenderia que tivéssemos uma cidade mais pós-moderna e neo-romântica, mais turistificada e multicultural e, portanto, com menos vagar para tratar da arte da existência Está, assim, mais do que justificada a razão de ser de Évora, uma comunidade de destino e uma cidade virada para o futuro. Vamos estar com atenção aos próximos episódios.