Este texto nasce de uma perplexidade. Para qualquer lado que olhe, em espaços políticos e culturais, vejo a utilização e a mobilização de “identidades” como base de lutas e acções políticas. Alguns colunistas de jornais, intelectuais, académicos e actores políticos não falam de outra coisa. E, no entanto, se entendo a importância histórica de corrigir desigualdades injustas que muitas vezes recaíram sobre algumas destas “identidades” colectivas, algo parece não encaixar. Como é possível que tanta gente queira fazer política com base numa “identidade” tão bem definida e delimitada, se eu própria não vejo a minha “identidade pessoal” como algo fácil de definir?
Durante décadas, as feministas, como muitos activistas pelos direitos civis, lutaram para transcender os rótulos. Hoje, observo quase uma ânsia de querermos pertencer a um grupo com um rótulo, que nos diz como pensar, sentir e agir. Pertencer a um grupo com o qual nos identificamos, com um rótulo que outros também sabem identificar, parece dar orgulho e até propósito a muita gente. Mas não é a identidade pessoal, pelo menos de acordo com uma concepção liberal da individualidade, da autodeterminação, da personalidade e da independência, precisamente o oposto?
Talvez o problema seja a ambiguidade do termo identidade, que de certa forma encerra em si mesmo inúmeras contradições. Vários académicos e observadores perspicazes repararam que o modo como hoje utilizamos o termo “identidade” é muito recente. Ainda hoje, se o leitor for consultar a definição da palavra a um dicionário, reparará que as primeiras definições correspondem a um sentido muito diferente daquele em que hoje pensamos, mas que é o sentido original, proveniente do latim “idem”, e que se refere ao sentido matemático e lógico do termo: qualidade do que é idêntico, paridade ou igualdade, unicidade, estado de ser o mesmo.
É relativamente ponto assente que a utilização moderna do termo terá começado, nos anos 50, quando o psicanalista Erik Erikson cunhou o termo “crise de identidade” para se referir a um conflito interior. Dito de forma vulgar, Erikson postulava ser frequente, ao longo de várias fases da vida, as pessoas não saberem bem quem são ou quais são os seus valores, origem, objectivos e carácter. Esta será a origem do significado psicológico do termo, que ainda hoje é utilizado. Em 1989, há menos de 35 anos, o Oxford English Dictionary, língua de onde apropriámos a utilização moderna do termo, apresentava esta como a principal definição do termo identidade: “a uniformidade de uma pessoa ou coisa em todos os momentos ou em todas as circunstâncias; a condição ou facto de que uma pessoa ou coisa é ela mesma e não algo outra; individualidade, personalidade”. Sendo certo que este significado da palavra ainda está em utilização, a curiosidade maior reside no facto deste significado da palavra se referir a algo que é individual e único, ao tal significado psicológico do termo.
Pelo contrário, grande parte da utilização actual do termo – na política e na cultura, latu sensu – refere-se a algo diferente: a categorias sociais. Quando referimos que somos “Minhotos” ou “Alentejanos”, “heterossexuais” ou “homossexuais”, “mulheres” ou “homens”, “trans” ou “cis”, “brancos” ou “negros” ou aludimos à nossa “identidade nacional” estamos a dizer que pertencemos a um grupo social identificável por um rótulo, cujos membros partilham uma característica ou comportamento comum, e que todos sabem identificar essa característica comum. Notem a natureza quase contraditória da dupla definição do termo, como nos lembra o filósofo Kwame Anthony Appiah: o primeiro significado refere-se a uma agência individual e a características distintivas individuais, o segundo a uma pertença inevitável a uma estrutura social. Podemos escolher a nossa identidade? Temos o direito de rotular os outros? O significado actual político e cultural do termo é tão contraditório que a resposta a ambas as perguntas é simultaneamente afirmativa e negativa.
O termo “identity politics” (políticas identitárias) parece só ter entrado em utilização durante a década de 1980 para se referir à mobilização política de inúmeros grupos sociais. À primeira vista, o significado moderno do termo, no âmbito político e cultural, parece referir-se ao sentido de “categorias sociais” e não ao sentido psicológico do termo. No entanto, olhando com mais atenção, notamos que, na verdade, o poder político do termo advém do modo como sugere que há uma ligação entre os dois significados: é a ideia de que a nossa vida individual – as nossas experiências, personalidade, pensamentos e ideias – está intrinsecamente ligada à pertença a esses grupos ou identidades sociais, que dá a essas identidades um poder de mobilização extraordinário. De acordo com esta perspectiva, eu tenho a minha vida ou a minha personalidade porque sou mulher, branca, heterossexual, cisgénero, de classe média-alta, portuguesa, etc. E são essas identidades que me fazem ter certas preferências políticas e agir politicamente de determinada forma. Muitas vezes, a própria pertença a determinado partido ou movimento político constitui-se também como uma identidade social e psicológica desse tipo.
A pertença a uma identidade social facilita e simplifica consideravelmente a nossa vida, incluindo a nossa identidade psicológica e o modo como compreendemos e lemos o mundo à nossa volta, e por isso é algo tão atractivo. Ironicamente, talvez a pertença a uma identidade social seja um antídoto para as tais crises de identidade pessoal que Erikson falava. Mas será este fenómeno realmente novo?
Se o uso actual de “identidade” é muito recente, o mesmo não se pode dizer do termo “guerras culturais”. Em 1991, o sociólogo norte-americano James Davison Hunter escreveu o seu influente livro “Culture Wars: The Struggle to Define America”, onde popularizou o termo “guerras culturais”. Aqui, caracterizou a política norte-americana como uma guerra cultural entre os campos progressista e conservador para definir os valores que devem reger o espaço público, manifestando-se a guerra em várias batalhas como a questão do aborto, do casamento homossexual ou da possibilidade de rezar ou efectuar outras actividades religiosas em escolas públicas. No entanto, Hunter esteve muito longe de inventar o conceito. Na verdade, exactamente o mesmo termo – Kulturkampf – havia sido utilizado mais de cem anos antes, na década de 1870, para descrever o conflito entre a Igreja Católica e o governo da Prússia, liderado por Otto von Bismarck, e que em grande medida era precisamente sobre o controlo católico da educação. As Kulturkampf e a sua “resolução” política são consideradas uma peça fundacional da Alemanha moderna. Estas guerras culturais do século XIX não foram, claro, exclusivas da nação germânica. Em muitos outros países, como França, Portugal ou Espanha, “guerras culturais” semelhantes desenrolaram-se com consequências políticas relevantes. Na verdade, estas guerras culturais parecem emergir como subproduto da construção moderna dos Estados-nação, que propiciou uma oposição entre liberais seculares (ou protestantes, nalguns países) e conservadores católicos. A importância central deste conflito na formação dos sistemas partidários modernos foi há muito reconhecida Stein Rokkan and S.M. Lipset, que o consideraram uma das clivagens fundadoras da política moderna. Embora seja falacioso considerar que as guerras culturais do final do século XX correspondem ao mesmo meta-conflito com vestes diferentes, as continuidades destas guerras culturais iniciais com as guerras culturais posteriores são evidentes.
Mas o resgate dos termos “identidades” e “políticas identitárias” como substituto das “guerras culturais” provavelmente quer dizer alguma coisa. É possível que seja uma mera alteração linguística sem qualquer significado. Mas acredito que este tipo de inovação na linguagem e discurso político não é meramente aleatório e que a sua difusão corresponde a alguma realidade empírica, ao facto de muita gente se identificar (lá está, o termo que nos persegue) com esse novo termo. E a grande diferença, parece-me, entre as “guerras culturais” e as “identidades” é que estas últimas nos convocam para uma dimensão mais pessoal e individual da nossa identificação com determinado grupo social. Parecem também, e por isso mesmo, possibilitar uma multiplicação quase infinita do número de “identidades”.
E aqui reside o problema fundamental de termos um excesso de identidades em política. Não é possível representar todas as identidades em política. Todos nós temos inúmeras identidades sociais e outras tantas potenciais. A saliência e mobilização de certas identidades, mas não de outras, resultam de escolhas e conflitos políticos. As várias identidades podem inclusive competir entre si para serem mais ou menos representadas no espaço político. Mesmo assumindo que apenas devemos considerar as identidades que são histórica e politicamente relevantes – sexo, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual, idade, geografia, classe social, identidade de género, habilidade física ou mental, etc – esse número continua a ser enorme e subjectivo. E as mesmas pessoas podem ser divididas em grupos de muitas formas.
É inegável que a pertença a cada um destes grupos nos poderá ter dado experiências de vida que nos levaram a ter certas preferências políticas ou a pensar de determinada forma. Por isso mesmo, é importante que uma assembleia nacional, por exemplo, seja um cosmos da sociedade que representa. No entanto, não podemos cair numa falácia determinista e essencializante da pertença a uma identidade social. O perigo da essencialização, notado por várias pensadoras feministas como Iris Manon Young e Jane Mansbridge, é atribuir uma essência única e comum a todos os membros de um grupo apenas por pertencerem a esse grupo. A ideia de que só as mulheres podem representar as mulheres, implica também que as mulheres não podem representar os homens e que uma qualquer mulher representa todas as mulheres, independentemente das suas ideias e preferências políticas, etnia, nacionalidade ou rendimento. Creio que esta visão das coisas não é correcta.
Pelo contrário, pertencer a uma identidade social não determina completa e inevitavelmente o que pensamos. Podemos ter mais em comum, naquilo que pensamos, com alguém que não partilha essa pertença social connosco do que com outros que partilham. Esta afirmação, aparentemente óbvia, deveria logo fazer soar um alarme, dadas as suas implicações: é possível ter ideias que não derivam apenas dos nossos interesses materiais ou das nossas identidades sociais. Eu não sou apenas a soma (ou a intersecção, para os fãs da interseccionalidade) desse número considerável de identidades sociais. Tal como me recuso a ver a política simplesmente como uma luta mecânica entre interesses materiais (ricos e pobres, capitalistas e trabalhadores), também me recuso a ver a política simplesmente como uma luta mecânica entre identidades sociais pré-definidas.
Se é verdade que um foco excessivo nas ideias nos pode ter cegado, no passado, à exclusão dos interesses e da participação de grupos subrepresentados na política, também é verdade que um foco excessivo nas identidades está na origem de inúmeras atrofias. Por exemplo, vários estudiosos, em vários países, já identificaram o conceito de “captured minorities”: quando um grupo social apenas se baseia na representação descriptiva, ao invés da representação substantiva, corre o risco de ver os seus reais interesses paradoxalmente desvalorizados na formulação de políticas públicas, pois o seu voto “já está garantido”. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, Paul Frymer argumentou que os eleitores Afro-Americanos, ao votarem sempre e em enorme desproporção no mesmo partido político, efectivamente deixaram de conseguir utilizar o seu voto como ameaça credível e arma política e, por isso, podem ser sistematicamente desconsiderados pelos políticos de ambos os partidos. No Paquistão, Mashail Malik mostrou como a pertença a uma comunidade étnica minoritária e historicamente discriminada pode levar, paradoxalmente, muitos eleitores dessa comunidade a perdoar falhas graves de governação por parte do seu partido de base étnica e continuar a votar nestes representantes por partilharem a sua identidade social. Desta forma, o voto com base na identidade pode prejudicar a capacidade de responsabilização (accountability) política. No limite, sabemos que as etnocracias – uma democracia baseada na atribuição de direitos políticos a grupos étnicos e não a indivíduos – não funcionam.
Apesar das minhas óbvias divergências com as suas ideias e objectivos, numa passagem muito bem conseguida no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx observou que “a Assembleia Nacional está numa relação metafísica com a nação” e “exibe nos seus representantes individuais os múltiplos aspectos do espírito nacional” (itálico adicionado por mim), ao contrário do Presidente que está numa relação pessoal e directa com a nação que a elegeu. Precisamente por esta razão não sou fã de uma política presidencialista e muito menos personalista. Não é possível representar toda uma nação, as suas múltiplas correntes, contradições e aspirações, num só individuo. Numa sociedade sem grandes desigualdades sociais no acesso à política, uma assembleia colectiva inevitavelmente contará com a presença dos vários grupos e identidades sociais. Mas representar os múltiplos aspectos da nação exige uma representação não apenas de identidades e interesses, mas também de ideias.