Foram publicadas, há dias, as alterações à lei das eleições locais. Uma lei tailor made para impedir autarcas como Rui Moreira de se recandidatarem nos moldes em que o fizeram nas últimas eleições autárquicas. Os dois partidos com maior representação no Parlamento, convictos de que assim evitariam as candidaturas independentes, que os afastam de mais uma repartição do mapa do poder local, entenderam-se numa espécie de “pacto de regime”. Isto leva-nos à custosa questão de saber se não teria sido mais útil aproveitar essa cumplicidade para repensar seriamente a lei eleitoral e a forma de elegermos os nossos representantes. Aqui vai um breve exercício.
Em democracia, os cidadãos delegam o poder soberano nos representantes que escolhem através de eleições, na expectativa de que estes levem a cabo políticas definidas num programa eleitoral, sustentado por um partido político. O sistema político português, que emergiu da Constituição de 1976, resultou do pacto MFA-Partidos, um acordo ditado por uma imperiosa necessidade de normalização da vida política da altura. Os partidos e o poder militar de então gizaram uma solução de compromisso, que acabou por sedimentar um sistema eleitoral rígido, exigindo a Constituição uma maioria qualificada para a sua revisão, difícil de obter. De modo que o sistema proporcional e o método de Hondt mantêm-se há mais de 40 anos. Dir-me-ão “é em nome da estabilidade”. Pois, certamente. Porém, passado tanto tempo e face ao natural devir de uma democracia moderna, impõe-se, no mínimo, uma reflexão sobre a adequação do sistema. O CDS propôs, aquando da reforma de 1989, a desconstitucionalização da lei eleitoral; o PSD, por seu turno, sugeriu a eliminação da referência constitucional ao método de Hondt, muito criticada por constitucionalistas. Nenhuma destas propostas vingou. Da versão actual, consta a possibilidade de os deputados poderem ser eleitos por círculos uninominais, com um círculo nacional de compensação, mas essa solução nunca passou desta referência. Acresce que a Constituição apenas admite candidaturas às eleições legislativas apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, não permitindo, fora das listas partidárias, candidaturas independentes ou de movimentos de cidadãos, o que se compreende, tendo em conta o importante papel mediador dos partidos entre o Estado e os cidadãos. O método pretende preservar o interesse da governabilidade, em detrimento do interesse da participação plural. Os deputados exercem livremente o seu mandato, sendo o seu mandato pessoal e não partidário, ainda que a questão da disciplina partidária por vezes se coloque, a propósito de certos temas do debate público.
O sistema eleitoral corresponde, assim, ao que foi adoptado para as eleições da Constituinte de 1975. Nestas primeiras eleições pretendia-se um modelo exequível e compreensível: a configuração do eleitorado era totalmente desconhecida, pelo que se julgou apropriado o método proporcional para a eleição de uma câmara que teria a função de fazer aprovar uma Lei Fundamental. Daí, que se tenha incumbido os partidos de elaborarem listas fechadas e se tenha preferido o método de Hondt para a atribuição dos mandatos, de modo a que as várias forças políticas pudessem eleger os seus representantes.
A função dos partidos é, grosso modo, agregar um projecto político, um programa coerente, que os cidadãos possam escolher. Porém, aquilo a que assistimos hoje nas democracias em geral, é a um domínio dos partidos no acesso ao mecanismo eleitoral, acompanhada de um enfeudamento dos partidos, que se fecham numa lógica interna difícil de compreender para o cidadão comum. Isto gera o afastamento dos cidadãos e da sociedade da vida política, promove elevadas taxas de abstenção e de participação eleitoral, incentiva a desconfiança nas instituições e nos políticos, favorece a desresponsabilização dos eleitos perante o seu eleitorado e redunda, necessariamente, num enfraquecimento da democracia. É pena porque, quer queiramos quer não, é no dia das eleições que, efectivamente, todos os cidadãos são formal e materialmente iguais e têm oportunidade de se manifestarem em urna, com o seu voto, ao invés de se indignarem diariamente nas redes sociais em torno da microcausa do momento.
Por tudo isto, mais do que rever cirurgicamente a lei das eleições locais, era imperioso repensar o sistema eleitoral. É certo que uma reforma deste sistema não é uma receita infalível para resolver todas as deficiências de um sistema imperfeito, mas ajuda.
Neste exercício, deixo aqui algumas pistas:
1 Reflectir sobre o reajustamento dos círculos eleitorais: a desigualdade na conversão de votos em mandatos, que resulta das diversas dimensões que os círculos eleitorais apresentam, afecta a aplicação do sistema proporcional e o método de Hondt. Lisboa e Porto são círculos de elevada magnitude, por comparação com Bragança ou Beja. Justificar-se-ia a agregação dos círculos mais pequenos (para reforçar a aplicação da regra da proporcionalidade) e o desmembramento de círculos maiores.
2 Reflectir sobre a consagração de um voto preferencial: nos sistemas de lista fechada como o nosso, em que cabe apenas aos partidos apresentar candidaturas ao Parlamento, os candidatos são seleccionados unicamente pela lógica interna das estruturas partidárias, seja através do órgão central, seja através do órgão local. O eleitor limita-se a escolher uma lista das várias que lhe são apresentadas. No sistema de voto preferencial, o candidato é seleccionado pelo partido, mas também pelo eleitorado que, entre os candidatos que o partido lhe propõe, escolhe aquele que, na sua perspectiva, deve ser eleito.
3 Reflectir sobre a consagração de um sistema misto de círculos uninominais e círculo nacional de compensação: nos círculos uninominais locais seria eleito um deputado, aquele que alcançasse mais votos, sendo os votos “desperdiçados” aproveitados para eleger os deputados do círculo nacional, como forma de compensar. Este sistema favorece os partidos mais votados, mas é uma forma de elevar o factor de representação e de personificar a escolha, cabendo aos cidadãos de determinado círculo escolher o seu deputado. Nas listas do círculo nacional, poderiam, assim, ser integrados especialistas em diversas áreas, já sem a preocupação de ligação do candidato ao distrito.
4 Pensar na hipótese de candidaturas independentes em listas próprias: isto apresenta a vantagem de permitir o acesso de cidadãos com vontade de participar, mobilizando gente que quer contribuir civicamente, mas que não se enquadra na lógica partidária; permite, também, a personificação das candidaturas e facilita a identificação do eleitorado com os candidatos. Tem, todavia, a desvantagem de dificultar o surgimento de maiorias governativas e de abrir o Parlamento a candidaturas não agregadas num projecto político conhecido.
Poderia apontar mais algumas ideias, como a limitação de mandatos de todos os eleitos, incluindo os deputados, ou os requisitos exigidos para as candidaturas independentes, mas estas quatro já dão uns bons tópicos de reflexão.
Relembro, para finalizar, que os 230 deputados que compõem o Parlamento foram eleitos – números redondos – por apenas metade dos votantes portugueses, o que significa que cada mandato que tem assento no hemiciclo representa muito menos cidadãos do que há uns anos. A sociedade civil precisa de estímulos e condições para se mobilizar e para participar e a democracia precisa dos partidos, mas não se esgota na organização partidária.
Rui Moreira está perfeitamente legitimado pelo povo, mesmo que não o esteja perante a lógica partidária. Trouxe uma visão nova para a cidade, aberta e dinâmica, tem características invulgares que desassossegam porventura o status quo, a sua dedicação à cidade e a obra que tem feito são visíveis e inquestionáveis. Representa um movimento genuinamente independente porque não nasceu de nenhuma dissidência partidária local, dele fazem parte cidadãos que são militantes de partidos, assim como outros sem qualquer ligação partidária. Um exemplo a seguir por outros que sintam o apelo cívico. Os partidos do bloco central preferiram ater-se a questões mais ou menos irrelevantes e pequenas em torno do nome ou dos dizeres para a designação das candidaturas (afinal apenas obstáculos burocráticos), em vez de progredirem com coragem para uma reforma séria de um sistema eleitoral que está caduco e que já não corresponde ao que se pretende hoje numa democracia participativa.