Viram os soldados alemães que ocupam o castelo de São Jorge? Repararam na bandeira francesa hasteada na Torre de Belém? Eu também não. Por isso, ainda não percebi em que força assenta isso a que os mais excitados chamam “ditadura europeia” e que, sob essa ou outra forma mais amena (“ingerência”), faz gemer tanto patriota. Ah, dir-me-ão, hoje as ocupações e as interferências fazem-se de outra maneira: são os tratados, a moeda, as regulações. Muito bem. Expliquem-me então que tratado foi o governo português forçado a assinar; que moeda se viu obrigado a adoptar; e a que regulações está sujeito sem ter participado no estabelecimento dos órgãos que as decretaram. Na história europeia de Portugal, se alguém forçou alguma coisa, foram os governos portugueses. Os franceses não nos queriam na CEE, os alemães não nos desejavam no Euro, e os finlandeses, se bem me lembro, nunca nos emprestaram dinheiro com entusiasmo.

Mas, diz-se agora, tudo isso foi feito pelos políticos, à revelia do povo, que nunca referendou a adesão à CEE ou à Moeda Única. Bem, o povo também nunca referendou a Constituição da República. O povo fez outra coisa: elegeu os deputados que votaram a Constituição, e também os deputados que aprovaram todas as iniciativas europeias. Argumentarão: mas no passado, a União Europeia era outra coisa, agora é que se tornou um império injusto. Pois bem: o Reino Unido vai referendar a sua permanência na UE. Porque é que os resistentes contra a “ditadura” não propõem um referendo que dê às massas oprimidas a opção de sair? O PCP, o BE e a ala radical do PS têm aqui uma oportunidade. O governo de António Costa depende deles. Porque não exigir um referendo europeu como contrapartida do seu apoio? Dirão: porque não querem “criar crises”. Mas afinal a “ingerência” poupa Portugal a crises?

Como é costume, não haverá coragem, nem vergonha: não haverá vergonha para deixar de bradar contra a “ingerência europeia”, nem coragem para pôr o país perante uma alternativa, porque não desejam responsabilidades: nem as do ajustamento, se permanecermos na UE, nem as da bancarrota e da desvalorização, se sairmos. O que continuaremos a ver, portanto, é casos como o do Pacto de Estabilidade e Crescimento deste ano, que a claque do governo prefere não votar, para poder fingir, como dizia um deputado do PCP, que é apenas um “instrumento de ingerência e condicionamento da UE”.

O PEC vincula o Estado, nos próximos anos, a um esforço semelhante ao da consolidação de 2010-2013. Uma imposição europeia? Não, uma opção deste governo e desta maioria para manterem o financiamento internacional e a protecção do BCE. Mas uma opção que, depois de anos de demagogia “anti-austeritária”, não lhes dá jeito assumir, e que por isso preferem tratar como “ingerência”.

Os oligarcas nem percebem que jogo andam a jogar. Julgam talvez que com a farsa da “ditadura europeia” estão, muito habilmente, a externalizar as culpas. De facto, estão apenas a expor-se como irrelevantes, ao mesmo tempo que cultivam uma xenofobia que outros, um dia, mobilizarão mais eficazmente. A oligarquia nacional ainda não percebeu que o mundo está a mudar. Marine Le Pen em França, Norbert Hofer na Áustria, ou Frauke Petry na Alemanha: o isolacionismo e o proteccionismo progridem, estimulados pela reacção contra a imigração do Mediterrâneo e contra os resgates do sul da Europa. Para Hofer, “a Áustria vem primeiro”. Sim, um dia, seremos libertados desta “ditadura europeia”. Só que não será por Catarina Martins ou por Jerónimo de Sousa, mas por um Hofer ou por uma Petry qualquer.

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