Conheci-a quando tínhamos ambas vinte tal anos. Morávamos no mesmo prédio quando se deu o 25 de Abril. Foram tempos de celebração contínua, vividos a preceito. Tudo parecia possível e durante algum tempo tudo foi possível. Talvez a Fátima tenha sido, de nós todos, a primeira a intuir que a História, que julgávamos ter nas nossas mãos, afinal nos não pertencia. Alguém, que não nós, puxava os cordelinhos que a moviam, e, por entre muitos tombos e encontrões, segurava-a sobre carris que não conduziam ao destino onde tínhamos encontro aprazado.
O quotidiano foi reentrando na normalidade possível quando os SUVs ainda davam entrevistas encapuzados e as ruas da cidade ainda se enchiam com cortejos de manifestantes que julgavam ter enfim raiado a sua alvorada. Grândola, a vila morena, já se transformava em vila capturada. A Fátima foi rápida a ler os sinais; nenhum pormenor lhe escapava. A desconfiança das aparências, a destrinça exaustiva dos factos, o zelo de observadora crítica, a obsessão de tudo verificar são marcas de todo o seu futuro trabalho académico. E são a ilustração prática da ética do cientista, que ela cultivou sem falhas. Muita gente tem dificuldade em convencer os outros; a maior dificuldade da Fátima era convencer-se a si mesma.
Nos milhares de páginas que escreveu e nos deixou, o leitor pode adivinhar os muitos mais milhares de horas que consumiu a investigar: nenhum detalhe era resolvido com um palpite ou truque retórico, nenhuma dúvida era dissipada por dedução de uma teoria geral. Formalmente, era classificada como socióloga; na prática e realidade, o seu gosto pelo concreto e o seu respeito pelos factos identificam-na como uma historiadora. A avaliar pela minúcia extrema das suas investigações, adquiriu, com o treino, a indiferença ao aborrecimento, essa indispensável capacidade de quem faz do seu trabalho uma procura de verdade.
Fátima Patriarca faz parte de uma geração que levava a sério esta procura de verdade, e ainda encontrou na Academia uma oportunidade para se dedicar a essa tarefa sem as pressas e urgências curriculares que actualmente a tudo se sobrepõem. Livros e artigos como os dela, feitos a partir de fontes primárias, levam muito tempo a preparar e escrever. A quantidade era secundária, o importante era a qualidade – o contributo para o conhecimento. Ainda assistiu, no seu tempo, ao desmoronar desse mundo “arcadiano” em que se liam e discutiam os clássicos, em que era natural – e possível – alguém perder um ou mais dias a verificar uma simples data ou a vasculhar os intrincados pormenores de um episódio aparentemente inócuo.
À Fátima Patriarca, nos seus estudos mais relevantes sobre o mundo laboral e as relações entre Estado, patrões e operários durante a edificação inacabada do corporativismo salazarista, não escapou o “valor indicial” de episódios menores em que ninguém se detivera. A par das grandes “encruzilhadas”, daquelas que toda a gente vê, focou também a sua atenção em “coisas ou aspectos que, à primeira vista, podem parecer triviais, sem importância”. Previamente equipada com “algumas hipóteses”, sugeridas por teorias e pela bibliografia disponíveis, partiu para o trabalho de campo como quem entra num “corpo a corpo das ideias e dos documentos ou dos dados empíricos”, preparada para “ter surpresas e desenganos”. Daqui resultou a obra em dois volumes, A questão social no Salazarismo, 1930-1947 (1995), que oferece uma versão demolidora das ideias então dadas como assentes.
Outra das grandes surpresas com que nos deixou foi a constatação da “relativa facilidade” com que se operou a transição do “sindicalismo livre para o sindicalismo corporativo” e a correlativa docilidade com que “a nova ordem acabou por se instituir”. Mais surpreendente ainda, é a pulverização do mito da heroicidade operária contra o corporativismo. A partir do VII Congresso da III Internacional (1935), o PCP, obedecendo às directivas de Moscovo, “passa também ele definitivamente a defender «o trabalho nos sindicatos nacionais»”, que, de “indignidade” e “traição” que era, “passará a ser um dever de todo o bom operário e de todo o bom comunista”.
Impõe-se ainda uma referência a um volumoso livro que Fátima Patriarca, após longa e minuciosa investigação, publica em 2000: Sindicatos contra Salazar. A revolta de 18 de Janeiro de 1934. Também este marco da hagiografia comunista sucumbe à inspecção da autora. “Nem a repressão, nem a propalada traição dos dirigentes sindicais, nem a debilidade organizativa explicam o fracasso da greve geral revolucionária marcada para 18 de Janeiro de 1934.”
A Fátima e eu fomos durante longos anos colegas no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Mas é a amiga de décadas que eu recordo com infinita saudade. Memória e recordações não me servem de consolo.