Em primeiro lugar, embora seja o menos importante, cumpre sublinhar que a eleição do ministro das Finanças português, Mário Centeno, para presidente do Eurogrupo, proporciona a António Costa uma oportunidade maravilhosa para exaltar o acerto da sua política e, não menos útil, uma oportunidade de oiro para rasurar da memória colectiva recente os desastres e as trapalhadas da sua governação, desde Pedrógão I e II até à transferência do Infarmed para o Porto, passando pela anedota de péssimo gosto em torno de Tancos. A eleição de Centeno, de momento – e Costa não costuma pensar a médio prazo – permite ao primeiro ministro sacudir uma certa pressão que desde Junho lhe estava a dificultar a tarefa de esconder o sol com uma peneira. Os portugueses, congenitamente desmemoriados e facilimamente deslumbrados, passarão os próximos dias desvanecidos e orgulhosos por terem um português num cargo internacional tão importante. Toda a nação se sentirá elevada até ao nível das nações europeias e enlevada com tamanha transcendência.

Resta que o cargo é deveras importante, seja qual for o novo formato que venha a adquirir o Eurogrupo no quadro de uma inevitável reforma das instituições europeias, e no quadro já anunciado de uma reformulação das regras que actualmente regem o Euro. Angela Merkel escolheu Centeno; “convenceu” o Partido Popular Europeu, onde se abriga a componente maioritária do Centro-Direita da UE, a eleger um ministro das Finanças português e socialista. Estranho, não parece ? Nem parece, nem é. Merkel acredita nas convicções socialistas de Mário Centeno tanto como eu, ou seja, nada. Quanto a mim, não acredito nada porque Centeno é antes de mais e acima de tudo, senão exclusivamente, um técnico competentíssimo, farto de ser deixado a apodrecer nos calabouços do Banco de Portugal. No tempo do anterior governo de Passos Coelho, ficou entre os três primeiros num concurso já não sei para quê, mas o ministro das Finanças, no uso legal dos seus poderes discricionários, preteriu o jovem economista doutorado por Harvard em benefício já não sei de quem. Centeno não gostou – muito compreensivelmente – e agarrou a primeira oportunidade para sair do beco obscuro em que os seus talentos permaneceriam inférteis. A porta de saída tanto lhe importava qual fosse. Na ocorrência, ela surgiu-lhe pela mão de um António Costa socialista cujo lugar de primeiro ministro conseguiu assegurar, mau grado ter perdido as legislativas de 2015, mediante uma abstrusa aliança parlamentar com a extrema-esquerda doméstica, o PCP e o Bloco.

Centeno não recuou perante a dificuldade de conjugar o preço dessa aliança – reposições, reversões, compensações e etc. – com as regras e metas do Euro impostas pela União Europeia. Mais: foi para além dessas regras e metas. Não fora a nódoa da nossa descomunal Dívida Pública – que nem ele foi capaz de disfarçar -, e teria alcançado a proeza inédita de fazer a quadratura do círculo. Deficit, crescimento do PIB e diminuição do desemprego – tudo mais do que em linha com as exigências europeias. Centeno era um artista. Era mais do que isso: um virtuoso, como aqueles violinistas que conseguem não falhar uma nota na execução da pauta mais complexa e exigente de um Paganini. Mas o seu empenho e desempenho nada tinham a ver com qualquer compromisso ideológico. O compromisso dele era – e é – com a Ciência Económica, e traduziu-se na capacidade técnica de engendrar os trapezismos orçamentais necessários para agradar à esquerda e satisfazer as suas reivindicações “inegociáveis”, sem, no entanto, ofender a ortodoxia de Bruxelas. Centeno era – e é – um notável especialista em maquilhagem. É, em suma, um economista ou financista para todas as estações. Socialismo? Vamos a isso! Neoliberalismo? Vamos a isso! Centeno não tem ideologia política nem escrúpulos ideológicos.

Como poderia Merkel não ter reparado neste perfil feito à medida do que ela precisava ?! Um técnico brilhante, liberto de tralha ideológica, ministro das Finanças de um pequeno país sem peso na “Balança da Europa”, país que portanto não estorva, como não estorva um economista pragmático, maleável, desempoeirado de convicções e princípios políticos ? O que interessa a Merkel que Centeno tenha deixado o Estado no osso, desprovido de meios para desempenhar as suas mais elementares funções ? Zero. O que interessa a Merkel que o crescimento do PIB português em nada, mas mesmo em nada, se deva às orientações do governo, devendo-se tudo ao turismo e às exportações ? E, maxime, o que interessa a Merkel que o ministro das Finanças da Geringonça tenha contribuído para agravar a pior chaga da economia portuguesa, aberta já no tempo do marcelismo, ou seja, a baixa produtividade do trabalho ? Interessa nada, porque nada disto condiciona a reforma do Euro nem o desenho do tão propalado Tratado Orçamental. Para Merkel, Mário Centeno é o presidente do Eurogrupo ideal. E aposto até em como a chanceler alemã não terá desilusões.

Não é verdade, ao contrário do que já disseram alguns comentadores, nomeadamente Ricardo Costa da SIC, que a ida de Centeno para a presidência do Eurogrupo deixe a direita ou o centro-direita mudo e calado, sem argumentos, sem discurso. Pelo óbvio motivo de que os erros a curto, médio e longo prazo da Geringonça não saem emendados ou rasurados pela merecida ascensão profissional de Centeno, que se limitou a traduzir em linguagem orçamental a orientação política traçada por António Costa ou imposta a António Costa pela divertida dupla que o sustenta no Parlamento e portanto no governo. A este respeito, vale a pena reler ou voltar a ouvir o discurso de Pedro Passos Coelho no Parlamento, por ocasião do encerramento do debate sobre o Orçamento da Geringonça para 2018. Com Centeno no Eurogrupo ou sem Centeno no Eurogrupo, não me parece que Passos tenha que mudar uma vírgula do que então disse.

Sintomaticamente, as reacções mais do que reservadas do PCP e do Bloco à promoção europeia de Mário Centeno foram mais do que cautelosas. António Costa que se cuide.

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