França, a par da Alemanha, sempre foi percecionada no contexto internacional como um dos motores da economia europeia. Um país de cultura, na vanguarda da criação artística, da literatura, do cinema e um exemplo de progresso económico e de integração social. Um país visto por muitos como um espaço de oportunidade, onde prosperar, crescer e progredir profissionalmente eram propósitos alcançáveis. Aos que, no passado, ambicionaram melhorar a sua condição de vida, aos que escolheram o país para se estabelecer, constituir família ou iniciar o seu negócio, França acolheu-os com generosidade e de forma amistosa. O sucesso da emigração portuguesa, nos idos anos 60 e 70, é, aliás, disso bom exemplo, com uma vastíssima comunidade emigrante dispersa um pouco por todo o país, perfeitamente integrada, e que desempenha, aos dias de hoje, um papel relevante em vários domínios da sociedade francesa.
Sucede, porém, que ao longo da última década, este quadro de prosperidade e de equilíbrio social foi perdendo força, emergindo no seu lugar um outro país. Acirrado, socialmente mais desigual e aparentemente em desequilíbrio, enleado em permanentes conflitos político-sociais e, mais preocupante, de cariz racial, onde sobressai um quadro de grande violência e de desrespeito pelas instituições da república.
França, outrora uma sociedade progressista e socialmente vibrante, assente em princípios fundamentais como o da integração na diversidade e o do respeito pelo pluralismo cultural, social e religioso dá, ora, mostras de estar a caminhar para uma realidade onde impera a agressividade e onde o protesto público se confunde com destruição.
A morte de um jovem de 17 anos nos arredores de Paris, é o exemplo mais recente, que vem confirmar que o problema de discriminação racial é provavelmente bastante mais profundo e aparenta estar a alastrar-se na sociedade francesa, com particular incidência no seio das forças de segurança. Mas o infeliz acontecimento retrata também o falhanço das recentes políticas de acolhimento de imigrantes, desenhadas sem regra ou critério discernível, e que tardam em corresponder às expectativas criadas nas gerações mais novas, ciosas de um horizonte que lhes proporcione acesso à educação e à habitação condigna. Por outro lado, parecem cada vez mais enraizadas as discrepâncias no modus-vivendi, em particular na segunda e terceira gerações cujas famílias são oriundas dos países do Magreb, em particular da Argélia e de Marrocos. O modelo atual de organização da sociedade francesa vive um período de clara efervescência, e até de algum descontrolo, sendo as ocorrências registadas nas bidonvilles dos arredores das principais cidades a sua mais evidente representação.
A par desta espécie de “revolução social”, os últimos anos têm sido igualmente pródigos no surgimento de fortes movimentos de contestação política e de protestos massivos de trabalhadores descontentes.
A raiz da insatisfação mais recente assenta no projeto de reforma do sistema de pensões levado a cabo pelo governo, que definiu o aumento da idade mínima de reforma – atualmente a mais baixa no contexto dos países da União – de 62 para 64 anos, assente no pressuposto razoável de que esta é uma decisão estrutural e absolutamente necessária para garantir a sustentabilidade futura do sistema de pensões.
Somam-se ainda as constantes manifestações, paralisações e greves que contestam o regular funcionamento da generalidade das instituições da república, em especial o serviço de transportes, o acesso ao ensino e até à própria organização do Estado. Este ambiente de permanente hostilidade acaba por contribuir para a imagem de um país em permanente ebulição, quase ingovernável, um estereótipo alimentado por uma propensão herdada para o conflito social da Revolução de 1789.
Já no final de 2018, o chamado movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes) organizou enormes manifestações, semanas a fio, que se prolongaram durante meses e que frequentemente degeneraram em violência. Em causa estava um conjunto de interesses tão diversos, como a oposição ao aumento dos preços dos combustíveis até a exigências de subida dos salários e de profundas mudanças constitucionais.
França caminha a passos largos para se tornar uma sociedade ingovernável, tomada por ódios, divergências e tensões sociais quase inultrapassáveis. Começa a tornar-se claro que a insatisfação é transversal e generalizada. Uma parte explica-se no descontentamento demonstrado por sindicatos e trabalhadores franceses. Mas a questão verdadeiramente grave e que a todos deve desinquietar é a manifesta inaptidão da comunidade e do Estado francês para responder às questões da xenofobia e do racismo. Nos dias que correm, parece estar a instituir-se uma cultura baseada na altercação e no conflito. A regulação social deixou de se fazer com ponderação, à mesa das negociações de modo institucional, e caiu de forma desregulada nas ruas.
Este permanente clima de crispação e de “guerrilha social” apenas aproveita aos extremos, da esquerda à direita, e aos movimentos populistas que dele se alimentam.
França não sairá a ganhar.