Quando, no passado dia 9 de Junho, Emmanuel Macron decidiu dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas antecipadas, ninguém percebeu qual era o seu objectivo. Face a um humilhante terceiro lugar nas últimas eleições Europeias, Macron reclamava a necessidade de clarificação. Como sabemos, esta é a justificação preferida de políticos no poder quando desejam ir a votos – fica sempre bem dizer que se quer ouvir o povo, re-legitimando os alicerces do governo representativo. No entanto, o próprio acto de marcar as eleições antecipadamente, no momento e no contexto em que desejam, apanhando de surpresa todos os adversários, é, evidentemente, uma decisão altamente estratégica. A primeira regra da política: nenhum político em funções abdica do seu próprio poder voluntariamente, a não ser que abdicar do poder actual sirva para alcançar mais poder ou um poder alternativo, num futuro próximo. Macron sabia que, qualquer que fosse o resultado, o seu lugar estaria seguro. No entanto, face aos resultados das Europeias, também sabia que uma maioria absoluta legislativa da coligação presidencial era uma miragem.

Macron não partia de uma maioria absoluta na Assembleia Nacional, que já havia perdido em 2022. No entanto, partia de uma posição muito confortável em que a coligação presidencial era, de longe, a maior força da Assembleia, na qual a União Nacional (antiga Frente Nacional) estava bastante sub-representada face à sua representatividade real. Partia também de uma posição em que o Primeiro-Ministro era da sua cor política e, de facto, sua escolha pessoal. Face aos resultados das Europeias, que mostravam um panorama eleitoral totalmente diferente daquele que estivera na origem da anterior assembleia legislativa, tudo isso estava em causa e, muito provavelmente, seria perdido. E foi perdido.

Face a uma decisão tão inesperada, muitas teorias começaram rapidamente a circular. O que teria pensado Macron? Estaria ele na posse de alguma informação que nenhum de nós possuía? Estaria ele embriagado de poder afastando-se, assim, da realidade? Estaria ele a jogar um xadrez político em cinco dimensões que nós, observadores comuns, não conseguíamos compreender? E será que desse elaborado xadrez resultaria um inesperado e derradeiro sucesso político para Macron?

Uma das teorias, talvez a mais simples, era a de que Macron sabia que a eleição Europeia que o havia colocado em terceiro era uma eleição de segunda-ordem. Chamados às urnas, os Franceses iriam decidir de forma diferente. Assim, poderia repor a sua autoridade até ao final do mandato. Tal autoridade seria tanto maior quanto maior a sua vitória e a derrota da UN, que todos previam que viesse a vencer as legislativas ou até mesmo alcançar uma maioria absoluta. Na cabeça de Macron, apanhando os partidos à sua esquerda e os partidos da direita moderada desprevenidos, o Ensemble tornar-se-ia a principal força dentro da grande coligação para “Salvar a República” (contra a extrema-direita), passando à segunda volta na maioria dos 577 círculos eleitorais uninominais. No caso de a aposta ser bem-sucedida, Macron seria a força dominante na Assembleia Nacional e teria legitimidade redobrada para o resto do seu mandato.

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De resto, esta foi sempre a principal estratégia política de Macron para subir as escadas da sua ambição política pessoal. De Ministro da Economia de um governo Socialista queria subir ao Eliseu, mas sabia que o velho Partido Socialista estava desgastado do mandato de Hollande e a direita moderada tradicional era cada vez mais uma miragem, face à subida aparentemente inexorável da UN. Assim, apostou num movimento, essencialmente unipessoal, ao centro. Como todos os movimentos unipessoais, tem o enorme defeito de não ter um partido a delimitar o seu poder pessoal, a fazer cálculos sobre a sucessão e a pensar na vida no pós-Macron. A aposta no Centro não parecia errada do ponto de vista estratégico e político. Quem estuda política sabe que o espectro ideológico esquerda-direita tem sido tão persistente, ao longo dos tempos, que acaba sempre por vir à tona, por mais vezes que tenha sido declarado morto. No entanto, quem estuda política sabe também que, crescentemente, uma segunda dimensão – globalista/cosmopolita versus nacionalista/soberanista – tem ganhado terreno na competição política, em muitos países. Macron tentou transformar essa na principal clivagem política em França e fazer do conflito entre extremos e centro a principal questão eleitoral. Chegou para o colocar no Eliseu, mas a prazo não chegará para a França nem para o seu sistema partidário.

Outra das teorias mais propagadas, mas bastante mais rebuscada, era a de que Macron estava a prever, como todas as sondagens indicavam, que a União Nacional ganharia as eleições legislativas. Assim, teria de nomear Jordan Bardella, o jovem cabeça de lista da UN, como Primeiro-Ministro. Bardella teria de governar em minoria, ou com o apoio parlamentar da direita tradicional. E teria, também, de governar em coabitação, isto é, com um Presidente de uma cor política diferente da sua. Em França, um regime semipresidencial onde a componente presidencial tem uma dimensão maior do que no nosso, essa coabitação é de uma dificuldade imensa para o PM em funções. Segundo esta rebuscada teoria, a ideia de Macron era trazer a União Nacional para o arco da governação, com ou sem a direita tradicional, mas ocupando o Matignon. Após três anos de difícil coabitação e com as habituais pressões sociais, económicas e orçamentais a que qualquer governo Francês está sujeito, os eleitores poderiam assim avaliar a real competência governamental da União Nacional e observar a diferença abissal entre declamar retórica anti-sistema de oposição versus governar com eficácia e apoio popular. Em 2027, depois da experiência, os franceses achariam assim menos sedutor votar em Marine Le Pen para Presidente.

A teoria era, portanto, insuflar já o balão da direita radical para que ele já estivesse a desinsuflar em 2027, tentando trazer a UN para dentro do sistema político, retirando-lhe a poderosa arma e allure de materializarem toda a oposição a esse sistema. Claro que esta teoria rebuscada e improvável não contemplava a possibilidade de os eleitores franceses preferirem Bardella a Macron, depois de os observarem a ambos a exercer o poder. Giorgia Meloni é a prova de como um governo em funções da chamada direita radical pode, na verdade, ser popular, mesmo que temporariamente e por razões contextuais (o partido de Meloni ficou em primeiro nas últimas eleições Europeias, algo pouco habitual para partidos em funções governativas).

Hoje, sabemos que todas estas teorias rapidamente se esvaeceram perante a realidade de Domingo à noite. Apesar das técnicas, sondagens e análises cada vez mais sofisticadas, apesar das narrativas que pundits, políticos e intelectuais gostam de contar incessantemente, o dia das eleições é ainda, na sua essência, imprevisível. E ainda bem. É nessa imprevisibilidade que reside, em parte, o poder dos cidadãos comuns e a sua capacidade de colocar em xeque os políticos nos distantes corredores do poder.

As teorias desabaram por três motivos. Primeiro, porque os vários partidos de esquerda conseguiram, em três semanas, pôr de parte as enormes diferenças que existem entre si e formar uma Frente Popular, unindo toda a esquerda. Como se coligaram e apresentaram como frente única em todas as circunscrições eleitorais, conseguiram tornar-se o segundo partido mais votado e, mais importante, conseguiram que, na segunda volta, o embate mais frequente fosse entre União Nacional-Frente Popular. Ou seja, Macron queria que o Ensemble se tornasse o maior partido da grande frente republicana, mas acabou por ter de ceder esse lugar à Frente Popular, desistindo e retirando-se da segunda volta em muitos distritos (apenas não o fez quando o candidato da Frente Popular fosse do partido de Melenchón).

Segundo, a teoria desabou porque a maioria dos eleitores franceses não considera que a União Nacional seja um partido com perfil e competência governativas. Talvez Marine Le Pen consiga convencer os franceses disso em 2027, mas, por enquanto, essa lacuna da UN acaba por conceder-lhe um tecto eleitoral para lá do qual não consegue expandir.

Terceiro, e finalmente, porque os eleitores foram muito estratégicos com o seu voto na segunda volta. Em ciência política, distinguimos entre voto sincero ou expressivo, que corresponde ao voto no nosso partido mais próximo, e o voto estratégico, que consiste em votar num partido que apenas temos como segunda ou terceira preferência, mas que, pela sua posição competitiva, é a única forma de impedir o partido que mais repudiamos de governar. Apesar de maioritário, o sistema eleitoral francês de duas voltas encoraja, naturalmente, o voto estratégico. Na primeira volta, todos podem votar com o coração, isto é, na sua preferência real. Na segunda volta, votam com a cabeça, isto é, estimando de quem menos gostam e votando contra essa opção. Foi assim que muitos eleitores da Frente Popular e dos partidos do Ensemble votaram. Cheguei a ver uma circunscrição eleitoral em que os eleitores do Ensemble na primeira volta foram votar em massa num candidato do Partido Comunista para impedir a vitória do candidato da União Nacional, dando-lhe a vitória.

O sistema francês tem um pequeno twist: qualquer partido que obtenha os votos de pelo menos 20% dos eleitores registados num distrito tem direito a passar à segunda volta, pelo que isto resulta nalgumas segundas voltas com três ou quatro partidos. Em muitas destas segundas voltas com três partidos, o Ensemble efectivamente desistiu de participar na segunda volta para reduzir ao máximo o número de votos “desperdiçados” e constituir uma frente anti-União Nacional. Noutros casos, os candidatos Republicanos ou da Nova Frente Popular desistiram para concentrar os votos contra a União Nacional. Assim, foi efectivamente este padrão de desistências estratégicas que fez com que a União Nacional tenha tido muito mais votos que qualquer outro partido (porque participou no maior número de segundas voltas e nunca desistiu), mas tenha ficado em terceiro lugar em número de assentos. Pessoalmente, não sou fã de sistemas de voto maioritários, porque acredito que a representação proporcional das correntes de opinião diversas que existem na sociedade é a forma mais justa e que melhor materializa os princípios de igualdade entre cidadãos e de democracia representativa. Geralmente, muitos sistemas maioritários são mantidos e desenhados para beneficiar alguns partidos e prejudicar outros. É esse o caso Francês. O sistema eleitoral actual foi desenhado para limitar a representação proporcional da então Frente Nacional. Naturalmente, por muito que discorde das suas ideias, este não é um princípio justo de imbuir na arquitectura institucional de uma nação. Os cidadãos são iguais perante o Estado e merecem a sua representação, quaisquer que sejam as suas opiniões.

No entanto, também não é correcto fazer uma comparação simples entre os votos que os partidos obtêm em eleições maioritárias, como no Reino Unido ou França, e imaginar que a representação mais “real” seria ter um parlamento com uma distribuição de lugares proporcional a esses votos. Isto porque os votos que observamos em sistemas maioritários incorporam as considerações estratégicas dos eleitores e dos partidos (como as desistências, os votos contra um partido, etc). Noutro sistema, os resultados eleitorais (em percentagem de votos) seriam também eles totalmente diferentes. As considerações estratégicas e expressivas dos eleitores mudariam radicalmente.

Finalmente, restas-nos a pergunta: e agora? Macron tem uma assembleia ainda mais dividida do que aquela que tinha há três meses. Deixou de ser a maior força legislativa e tenta agora construir uma coligação de governo sem União Nacional e sem França Insubmissa (o partido de Melénchon, que é apenas uma parte da Frente Popular que foi a eleições). Não sabemos se tal é possível e não sabemos se França conseguirá adoptar um espírito de alianças, coligações e negociações mais típico de regimes parlamentares puros noutras andanças. Depois de Domingo, sabemos também outra coisa: o tecto eleitoral da União Nacional existe e qualquer candidato de centro, centro-esquerda ou centro-direita parece conseguir derrotá-la. No entanto, se o embate for entre esquerda radical e direita radical, o resultado poderá ser imprevisível. A melhor maneira de Marine Le Pen chegar ao Eliseu seria disputar uma segunda volta presidencial com Jean-Luc Mélenchon.