Assim começava o discurso de despedida do primeiro Presidente dos Estados Unidos da América, George Washington. Com o aproximar das eleições do próximo dia 3 de Novembro, dou por mim a regressar a este texto com sempre renovada admiração, mas também com profunda surpresa pela contínua atualidade de algumas das suas ideias, especialmente para o atual estado da política norte-americana.

As circunstâncias desta mensagem do Presidente Washington aos seus amigos e concidadãos são, em si mesmas, extraordinárias. Ocupante inaugural e relutante deste cargo, o Presidente Washington ocupou a Presidência dos Estados Unidos durante dois mandatos com continuado, consensual e entusiástico apoio dos cidadãos americanos, sem dúvida gratos pelo papel do General Washington durante a Guerra da Independência e do seu papel fundamental na estabilização, interna e externa, da nascente nação. À data, a Constituição americana não continha nenhuma cláusula – como hoje acontece – de limitação de mandatos do Presidente e era expectável que o Presidente Washington fosse continuamente reeleito sempre que se apresentasse à consideração dos eleitores. Ao decidir e anunciar com este discurso a sua intenção de não ser considerado para um terceiro mandato de Presidente, Washington não só chocou todos habitantes daquela jovem nação, como aproveitou o momento para deixar dois conjuntos de lições fundamentais para o futuro.

Em primeiro lugar, a própria decisão de não se recandidatar encerrava em si a lição de que a União era maior e mais importante do que qualquer homem. A virtude essencial da nova República Americana, por comparação com os estados monárquicos da época, era ser algo de superior a qualquer indivíduo, a qualquer dinastia, a qualquer partido. Lin-Manuel Miranda, no excecional musical “Hamilton”, traduz esta mensagem implícita de Washington ao pôr na boca do Presidente naquele musical estas palavras: “One last time, the people will hear from me / One last time, and if we get this right / We’re gonna teach’ em how to say goodbye”.

Em segundo lugar, com a sua mensagem de despedida, Washington aproveitou para deixar um conjunto mais explícitos de conselhos e avisos aos seus amigos e concidadãos sobre o futuro da União. O tema central do discurso é a União e a Desunião. A União, não apenas enquanto a entidade constitucional federal, mas também, e principalmente, como o sentimento de unidade nacional, forjado inicialmente nos fogos da Guerra da Independência e aprofundado com a elaboração da Constituição Federal e com a ação política dos 8 anos da Presidência Washington, foi identificada pelo Presidente como o cimento fundamental para os sucessos futuros da Nação. Posto isto, Washington considera depois os perigos que podem destruir esta União e comprometer o futuro da nação. De forma muito particular e especialmente relevante para os dias de hoje, o Presidente apresentou nesta mensagem palavras bastante duras quanto ao perigo do partidarismo ou divisões de fações políticas, que hoje conhecemos na sua versão mais extrema de tribalização política, que contamina a discussão política nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo. Atrevo-me a transcrever algumas das palavras de Washington a este respeito:

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“O domínio alternado de uma fação sobre a outra, aguçado pelo espírito de vingança – natural à dissensão partidária – que em diferentes idades e países perpetrou as mais horrendas enormidades, é, por si só, um terrível despotismo. Mas conduz, com tempo, a um despotismo mais formal e permanente. As desordens e misérias que daí resultam inclinam gradualmente a mente dos homens a procurar segurança e repouso no poder absoluto de um indivíduo; e, mais tarde ou mais cedo, o líder de uma fação prevalecente, mais capaz ou mais afortunado que os seus concorrentes, traduz esta inclinação para efeitos da sua própria elevação, para ruína da liberdade pública.”

E continua: “[A dissensão partidária] serve sempre para distrair o discurso público e enfraquecer a administração pública. Ela agita a comunidade com infundadas invejas e falsos alarmes, acalenta animosidades de uma parte em relação à outra, fomenta ocasionalmente revoltas e insurreições. Abre a porta a influência e corrupção estrangeira [!], que encontra acesso facilitado ao próprio governo através dos canais das paixões partidárias.” (tradução própria).

Há algo de assustadoramente profético nestas palavras de Washington, escritas e proferidas em 1796. Olhando hoje para o estado da política americana, o primeiro e mais importante fenómeno que ali encontramos é precisamente o da tribalização política, uma versão extrema da dissensão partidária sobre a qual Washington avisava na sua mensagem. A tribalização pode ser observada e entendida pela retórica e ação política que consideram que o(s) partidos(s) do outro lado da clivagem ideológica não como colaboradores democraticamente mandatados no processo de construção da comunidade e desenvolvimento da ação política, mas como verdadeiros inimigos, incorrigivelmente errados nas suas convicções e cujo acesso ao poder apenas poderia levar à eventual ruína da comunidade. A linguagem da tribalização política é a linguagem do essencialismo e da divisão: “Nós ou a Desgraça”.

Instrumentalizada por políticos mais ou menos mal intencionados e aproveitando-se do circo mediático de agências noticiosas sempre ávidas de preencher o tempo de antena com o mais recente escândalo, intriga ou indignação, a tribalização política tem como consequência última a própria instrumentalização da democracia: o mandato democrático, expresso pelo voto, já não é uma forma de constituir as autoridades políticas como um espelho das vontades e inclinações do povo, mas como uma competição pelo domínio político de uma fação sobre a outra.

Se isto é evidente na eleição para Presidente, é ainda mais notório quando consideramos a composição de órgãos legislativos, como o Senado americano, que também está em disputa nestas eleições: 51 senadores republicanos e 49 democratas, ou vice-versa, deixam de ser a expressão da vontade popular, para passar a ser um instrumento de dominação política de um partido em relação ao outro. O resultado da tribalização é, precisamente como temia e avisava Washington, a instrumentalização da vontade popular para o estabelecimento de um despotismo.

Nestes últimos dias de campanha, talvez fosse útil aos líderes de ambos os partidos americanos voltar a ler estas palavras de despedida de Washington e que, inspirados pelo amor e zelo deste primeiro presidente pela sua Pátria, reconsiderassem a forma como utilizam a linguagem e os atos da tribalização política para os seus próprios fins políticos, apesar de o mal já estar praticamente consumado. Para nós que assistimos de fora a esta competição eleitoral, talvez seja também útil refletirmos sobre estas palavras sábias de Washington, e examinarmos de que formas também cedemos à linguagem e aos atos da tribalização política e se, ao admitirmos provar desta maçã envenenada, não estaremos a abrir a porta a novas e terríveis formas de despotismo. Se, obviamente, a diversidade de partidos políticos é uma força extremamente benéfica para o bom exercício do poder político, retomando as palavras de Washington, ela é como um fogo que “para que não se apague, requer constante vigilância para prevenir que se torne num incêndio que, em vez de aquecer, destrói.”