A magnânima insistência com que somos recordados do fim último das Comissões Parlamentares de Inquérito – a descoberta da verdade – por parte de quem por ela não nutre particular afeição encerra qualquer coisa de uma misteriosa bravata que exige exame atento: ao nosso Primeiro-Ministro, por exemplo, nem por um momento lhe vacilaram a voz nem os artelhos quando, num acesso de denodado jansenismo, nos confessou que essa descoberta deveria ser levada a cabo de forma condizente – “doa a quem doer”.

Quando, diante de dois relatos opostos, Galamba asseverou com idêntica e desarmante candura não haver “contradições, mas apenas duas versões que não batem certo”, ele deu corpo, sem que o soubesse, a uma das mais antigas angústias da filosofia – a possibilidade de a linguagem comunicar a essência do ser. E, ainda que a sua performance parlamentar não tivesse saldado a incómoda dívida da TAP, ajudou pelo menos a abater com folguedo e reinação a insuportável altivez com que a filosofia, a literatura e a religião – instrumentos elitistas e, evidentemente, de direita – tacteiam discretos diálogos em que a fímbria da ‘verdade’ por vezes assoma.

No entretanto, vai-se avolumando uma outra dívida: a que conjuntamente contraímos junto da cultura que nos acolheu, particularmente a daquela tradição secular que sempre rejeitou o fideísmo – esse pérfido desejo de acreditar contra a razão – porque sempre soube que o espírito não pode ser forçado a crer naquilo que sabe ser falaz e que qualquer discurso que ofenda os princípios da razão se torna absurdo e ridículo. Nas discricionárias mãos afeitas ao cálculo de proveitos e conveniências, contudo, a ‘descoberta da verdade’ torna-se pura prestidigitação, coreografia exequial do poder, infame abastardamento da linguagem.

Não é por acaso que os alvores do discurso filosófico se confundem com a elevação da polis até à cota de um espaço dialético em que a linguagem, de tosca ferramenta referencial, se torna subitamente conhecimento, sentido, justiça, poiesis e comunhão entre cidadãos e entre estes e o numinoso – conceitos de que Galamba se recorda vagamente ter ouvido falar mas com os quais não priva.

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Platão inicia o seu percurso naquele preciso ponto em que o embaraço socrático da definição – dizer o que é aquilo que é – o coloca diante da intempérie já não de definir, mas de descobrir e fixar as essências das coisas, de encontrar a unidade diante da ameaça da multiplicidade, pois qualquer predicação implica, à uma, um problema de unidade e multiplicidade. Quando digo “o homem é um animal falante”, identifico animal e homem, afirmo que duas coisas são uma – pura volúpia para o linguajar de Galamba.

O que é que torna possível esta predicação e, sobretudo, a sua verdade? Afirmar que A é B não equivale a mencionar A primeiro e B depois, sem qualquer conexão entre ambos, mas antes a dizer que este B é o ser B de A. O pressuposto da predicação A é B é que A é A; isto é, a identidade de A, que por sua vez se desdobra em duas exigências – o A é uno e permanente – que o nosso ministro das infraestruturas olimpicamente ignora.

Quando digo “o homem é um animal falante”, é preciso que o homem seja unívoco e que, para além disso, referindo-me a ele enquanto ser falante, permaneça homem. A definição no sentido socrático e platónico parte do pressuposto da identidade e permanência dos seres. Quando quero dizer algo sobre um qualquer objecto de desejo – um computador, por exemplo – verifica-se antes de mais que existem muitos; em segundo lugar, que os computadores que existem hoje não permanecem, não existiam há cem anos e por certo não existirão (assim) dentro de outros cem; por fim, quando digo que o meu computador é cinzento, essa afirmação não é, em rigor, correta, porque ele tem sombreados e recessos; donde o computador perfeito, o computador sem mais, aquele pelo qual anseiam almas atormentadas pela cupidez, não existe, pelo que, quanto mais não fosse por razões epistemológicas, talvez não se justificasse chamar o SIS a desoras. Pode-se dizer – como aquelas agónicas horas de audição demonstram – que quase predicamos umas quase propriedades sobre umas quase coisas.

Cruzassem-se num bar os destinos de Platão e Galamba e talvez umas quantas taças de hidromel lhe dissipassem aquele seu ar de homem caído no mundo das sombras, enquanto o mestre togado da Academia dissertasse sobre o mundo inteligível onde o bem, a verdade e a harmonia tornam evidentemente dispensáveis casas de banho e telemóveis.