O problema que, hoje em dia, mais dramaticamente atormenta o mundo e, muito em particular, a Europa, é a escalada bélica a que temos vindo a assistir na fronteira russo-ucraniana. Desde que a Rússia enviou as suas tropas para essa fronteira – a leste, a sul, na Crimeia e a norte, na Bielorússia – fazendo um cerco ao território ucraniano através de largas dezenas de milhar de militares, bem equipados e apoiados com meios e material de combate pesados – tanques, carros de combate, peças de artilharia, veículos de transporte, aviões e helicópteros de ataque, entre outros – levantaram-se, no Ocidente, legítimos receios de uma invasão da Ucrânia pelas tropas russas. Alguns comentadores, mais ingénuos ou mais otimistas, acreditaram, porém, na palavra de Vladimir Putin, o ditador que governa a Federação russa, que se desdobrou em declarações afirmando que a Rússia não atacaria a vizinha Ucrânia. E assistiu-se a um corrupio, algo humilhante, dos líderes ocidentais a caminho de Moscovo, onde Putin se dignava recebê-los, qual monarca marcando as suas diferenças e discriminando os interlocutores. Alguns, considerados mais importantes ou mais próximos do líder russo, sentavam-se mais perto do “novo czar” (casos de Biden e de Erdogan, o Presidente turco, tal como o ditador bielorusso, o vizinho Lukashenko, seu aliado e vassalo desde a primeira hora); outros, como foi o caso de Emmanuel Macron, sentado à sua frente a metros de distância, no topo de uma mesa enorme, visivelmente secundarizado.
A Casa Branca chegou a anunciar o dia da invasão: 4ª feira, dia 16 de fevereiro. Não tendo ocorrido a invasão nessa data, embora as violações ao cessar-fogo nos territórios separatistas de Donetsk e Luhansk, na região do Donbass (no leste da Ucrânia, de maioria russófila) tivessem sofrido um crescimento preocupante, as vozes que defendiam a não invasão sentiram-se legitimadas para criticar a “histeria” dos líderes ocidentais.
Esquecem ou não vislumbram o ponto fulcral do problema: a diferença real entre os regimes, crenças políticas e modos de vida dos dois mundos que se enfrentam, materializando-se naquele conflito em concreto: o Ocidente – Europa democrática/Estados Unidos – e o Oriente – Rússia e seus satélites. E por tal, o que significaria para a Rússia aceitar o livre arbítrio da Ucrânia na sua relação cobiçosa com o Ocidente. Como nota Teixeira Fernandes na sua crónica de hoje: “ […] a Rússia é necessariamente um Estado excepcional e diferente do Ocidente. A democracia liberal – tal como, por exemplo, a União Europeia a entende – implicaria aceitar a possibilidade de desagregação do Estado russo em componentes políticas mais pequenas, dada a sua diversidade de Estado-império com múltiplos povos e minorias.” (in PÚBLICO de 23.2.22, pág.7). E essa é uma impossibilidade absoluta para Putin ou qualquer líder russo !
Entretanto, os “ucranianos comuns agastam-se perante proclamações bélicas dos governantes estrangeiros”, «Somos peças de xadrez, mas as nossas vidas são reais», titulou o semanário Expresso, de 18 do de fevereiro, pág.7. Compreensivelmente, os ucranianos repudiam todas as declarações que referem a iminência da invasão e/ou a inevitabilidade da guerra.
Infelizmente, na segunda-feira, dia 21, Putin decidiu dar um passo em frente. Através de uma declaração muito dura para com a “Ucrânia moderna”, decidiu reconhecer a independência dos territórios separatistas de Donetsk e Luhansk, da região secessionista do Donbass, no leste do País, que afirmou serem “terras russas” genuínas. Situou a decisão num contexto histórico relatado ao jeito que lhe dava jeito e entendeu por bem explanar e num quadro jurídico-constitucional finalisticamente justificativo e, até, legitimante, na medida em que foi precedida por um pedido da DUMA, a câmara baixa do Parlamento russo, que aprovou um projeto de lei que pedia o reconhecimento da independência das auto-proclamadas Repúblicas separatistas no leste da Ucrânia.Logo após, e com a anuência óbvia dos líderes das mencionadas Repúblicas, assinou o diploma de independência dos territórios separatistas e determinou a deslocação para a Região de tropas russas estacionadas na fronteira. Tudo com a rapidez e a eficiência apenas possíveis num regime autoritário, caracterizado, ademais, pela concentração do poder nas mãos de um só homem, que planeou e tomou as decisões e lhes deu execução. Também aí as ditaduras se distinguem das democracias.
O déspota do Kremlin rasgou e deitou para o lixo os Acordos de Minsk, de 2014 e 2015, tão laboriosamente alcançados, enquanto, mais uma vez, responsabilizou a Ucrânia pelo exclusivo incumprimento desses acordos. A culpa é sempre dos outros…!
A nível nacional, cabe sublinhar o exclusivo apoio, entre os nossos partidos, do PCP à decisão de Vladimir Putin; o PCP não hesitou em se posicionar do lado do ditador. O seu ódio visceral e acrítico aos EUA não lhe consentia outra posição. E teve, aliás, o descaramento quase insultuoso para a nossa inteligência, de atribuir as culpas do acontecido ao “imperialismo” norte-americano (não podia deixar de ser!…), à NATO e ainda à (pobre da) Ucrânia.
Zelensky, o Presidente ucraniano, apelou obviamente à Paz, mas, caso os russos optem pela guerra, garantiu a defesa inabalável e feroz de cada centímetro do solo ucraniano.
Os países ocidentais decidiram, violados que foram os Acordos e o Direito Internacional, aplicar sem perda de tempo um pacote de sanções contra a Rússia. Foi o que fizeram os EUA, a União Europeia e o Reino Unido. A Alemanha decidiu, suportando embora severos custos nacionais, suspender a credenciação do gasoduto Nord Stream2. As tímidas medidas sancionatórias para já anunciadas visaram três alvos fundamentais: (a) os decisores políticos responsáveis pelo reconhecimento dos territórios separatistas; (b) aqueles que estejam ou venham a estar envolvidos na invasão da Ucrânia; (c) os Bancos que financiarem as operações bélicas da Rússia.
Restam agora – e não é coisa pouca! – os problemas suscitados pela dimensão das ações militares que os russos venham a desenvolver no terreno. Até onde chegarão na sua dinâmica invasora? Limitar-se-ão a consolidar os territórios abrangidos pelos distritos de Luhansk e Donetsk, na sua atual configuração, ou estenderão a ocupação a toda a região do Donbass, com área bem superior à ocupada pelas forças separatistas pró-russas?; ou irão ainda mais longe, visando a invasão total da Ucrânia com a chegada a Kiev? Seria a guerra total, num mundo ensandecido que nunca imaginámos possível poder vir a ser o nosso! Se acreditarmos que a cada século cabe, na história dos povos, um louco ébrio de poder e domínio avassalador, depois de Napoleâo Bonaparte no século XIX e de Adolfo Hitler no século XX, Deus permita que não tenhamos encontrado o do século XXI: Vladimir Putin
Lisboa, 23 de fevereiro de 2022