As notas dos alunos subiram durante a pandemia — informou-nos ontem o Público, baseando-se em dois relatórios da DGEEC. Repare-se no pormenor importante: as notas não subiram após a pandemia, como se isso significasse algum tipo de recuperação do dano na aprendizagem. Nada disso: as notas subiram durante a pandemia. Aliás, se a opção for pelo rigor, a afirmação que fez a manchete do Público deveria ser revista: não foi exactamente “durante”, pois as notas nas escolas subiram instantaneamente assim que a pandemia começou. Logo no ano lectivo 2019/2020, quando as escolas básicas foram encerradas em Março até Setembro, as classificações dos alunos subiram em flecha — e nesses patamares elevados se mantiveram nos anos lectivos seguintes (também eles cheios de perturbações ao normal funcionamento das escolas).

Veja-se, por exemplo, o 2º ciclo do ensino básico, onde a percentagem de alunos com classificações internas altas (4 ou 5) subiu bruscamente no ano lectivo 2019/2020 (o primeiro da pandemia). Em Matemática (5º ano), pouco mais de um terço dos alunos tinha bons desempenhos (35% em 2016/2017; 38% em 2017/2018; 39% em 2018/2019). Agora, praticamente metade dos alunos tem notas altas: 46% em 2019/2020; 47% em 2020/2021 e 2021/2022. Ou seja, com a pandemia, a proporção de boas notas deu um salto de 7 pontos percentuais. A tendência é comum à disciplina de Português, onde a melhoria instantânea alcançou os 8 pontos percentuais. Aliás, a tendência é comum aos vários anos de escolaridade: mal começou a pandemia, as notas internas dos alunos subiram.

Face aos dados, importa ponderar sobre a interpretação a atribuir aos resultados — e só existem duas possibilidades. Hipótese 1: se se acreditar que estas notas internas dos alunos são comparáveis com as de anos anteriores e representam uma efectiva melhoria dos alunos, então resta-nos concluir que o encerramento das escolas gerou uma melhoria espontânea na aprendizagem dos alunos. Hipótese 2: se as notas não são comparáveis e apenas revelam que os professores recalibraram os seus critérios de avaliação devido à pandemia, então esta subida de notas não traduz qualquer melhoria na aprendizagem.

Parece-me evidente que a hipótese 2 é a verdadeira. Desejo boa sorte a todos aqueles que se entusiasmaram com a hipótese 1 e aguardo que, em coerência, proponham o encerramento das escolas como medida de promoção da aprendizagem. E se o leitor considerar que não há quem possa tomar a hipótese 1 como boa, então desiluda-se. No Público, os especialistas ouvidos sobre a matéria dividem-se sobre o significado destes dados e vários argumentam a favor de uma efectiva melhoria na aprendizagem no período da pandemia. Pior: na Renascença, Filinto Lima, director de escola e presidente da ANDAEP, associou a recente “melhoria” ao trabalho dos professores e ao sucesso do plano de recuperação da aprendizagem — ignorando que a tal “melhoria” das notas internas ocorreu logo no ano lectivo 2019/2020, com os alunos em casa e mais de um ano antes de o plano da recuperação da aprendizagem sequer existir no papel. Enfim, não me ocorre prova mais definitiva de que a pandemia afectou também a literacia estatística e o bom-senso de quem participa no debate público da educação.

As coisas são como são. O Público fez ontem uma manchete a partir de um debate irrealista, no qual se converteu a inflação de notas internas numa “melhoria” dos alunos. De resto, no contexto da pandemia, essa inflação de notas tem zero de surpreendente. Quem monitoriza as classificações internas dos alunos sabe que estas reagem a incentivos sistémicos. Um exemplo é a realização de avaliações externas: se houver exames, as escolas evitam inflacionar notas internas, porque percebem que serão denunciadas pela comparação dessas notas internas com os resultados dos alunos nos exames. Ora, com a pandemia, os travões contra a inflação de notas internas caíram todos e os incentivos inverteram-se: naqueles anos, não se realizaram provas de aferição ou exames no ensino básico, e instituiu-se que, com as escolas fechadas, seria duplamente penalizador reprovar alunos. A consequência óbvia e previsível foi a subida das notas internas — e estranho seria se tal não tivesse acontecido.

É triste que, no final de 2023, estejamos ainda neste ponto. Enquanto pelo mundo inteiro há diagnósticos alarmantes sobre o dano na aprendizagem causado pela pandemia, em Portugal, o debate público deixa-se encantar por notícias de “melhorias” sustentadas em pensamento mágico. E, enquanto se promovem essas ilusões de “melhoria” dos alunos, continuam dezenas de milhares de alunos sem professor a pelo menos uma disciplina. Quem fica à espera de milagres recebe aquilo que merece.

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