Há poucos anos era apresentada como a mais poderosa empresa portuguesa, um exemplo de boa gestão, de inovação e de capacidade para crescer em novos mercados. Hoje é um destroço que os brasileiros querem deitar borda fora, vendendo-a a uns franceses cujos pergaminhos ninguém conhece.
Há algum exagero nestas duas descrições: nem a PT de há alguns anos era maravilhosa, nem a empresa deixou de ter qualquer valor. Mas isso não impede que estejamos perante uma história exemplar. Uma história que nos mostra aonde conduz a promiscuidade entre negócios e política. Uma história que mostra como a interferência dos governos nas empresas faz, por regra, mais mal do que bem (estou mesmo tentado a escrever que faz sempre mais mal do que bem).
A história da PT vai até esses anos em que a empresa começou a ser engordada para depois ser privatizada. Nesse processo o Estado e os governos não só a protegeram como lhe ofereceram, de mão beijada, novos monopólios ou quase-monopólios – foi o caso da TV Cabo. O objectivo era conseguir receitas o mais elevadas possível, pois o dinheiro das privatizações ia directamente para abater à dívida pública e Portugal precisa de cumprir os critérios de Maastricht para poder aderir ao euro.
É bom recordar que a forma como realizámos as reprivatizações ajudou a iludir, enquanto houve grandes empresas para vender, alguns dos problemas de dívida pública. Contas feitas por Vítor Bento às receitas dessas vendas, projectando a sua capitalização à taxa de juro implícita da dívida, permitem verificar que, em 2007, se o Estado não tivesse andado a vender empresas teria, nessa altura, mais 30 pontos percentuais de dívida pública, isto é, já nessa altura, a dívida pública estaria muito perto dos 100 por cento do PIB. Se projectarmos os valores para hoje, esse rácio estaria acima dos 170 por cento – como a dívida grega.
Claro que isto teve um custo em endividamento do sector privado, sector esse que chegou ao tempo da troika como o mais endividado de toda a União Europeia (em 2012 a dívida das empresas privadas não financeiras estava nos 140 por cento do PIB). É também por isso que hoje vemos tantas empresas portuguesas a serem compradas por estrangeiros: sobre-endividadas, vão à procura de dinheiro onde ele existe, mesmo que seja do outro lado do mundo, na China.
Como empresa meio privada, meio pública – mesmo que só por via da golden share – a PT sempre serviu todos os governos, e estes sempre retribuíram oferecendo-lhe vantagens competitivas que lhe permitiam agir a seu belo prazer no mercado português, um mercado cativo e protegido onde sempre teve poder excessivo e do qual sempre retirou rendas exorbitantes.
Não são poucos os casos que ilustram este concubinato, da compra da rede fixa para baixar o défice de 2002 (com Manuela Ferreira Leite) à transferência do fundo de pensões em 2010, também para baixar o défice (com Teixeira dos Santos/José Sócrates), passando pela mais indecorosa instrumentalização com o objectivo de comprar a TVI e mudar a sua orientação editorial ou pelo anúncio de investimentos em infraestruturas na altura em que isso era conveniente para a propaganda do anterior primeiro-ministro.
Os governos, e um regulador servil, permitiam que a PT beneficiasse da sua posição dominante no mercado português, distribuindo mordomias a muita gente grada e dividendos volumosos a accionistas sequiosos, e a PT foi retribuindo em muitas e variadas áreas.
Isso não quer dizer que, como empresa, a PT não tivesse coisas boas, não fosse inovadora em muitos domínios e não tivesse realizado bons investimentos (como foi o caso da Vivo no Brasil) – mas podia ter sido uma empresa ainda melhor se o mercado das telecomunicações tivesse funcionado com mais concorrência desde o início. Não poderia era, ao mesmo tempo, ir servindo os governos conforme estes dela necessitavam.
Este ciclo podia ter sido interrompido se o accionista Estado não tivesse – nomeadamente através da Caixa Geral de Depósitos no tempo de Armando Vara – feito tudo o que podia para impedir a OPA da Sonaecom à PT. Foi nessa altura que se consolidou a aliança entre o governo de Sócrates, o grupo Espírito Santo e a sua aliada Ongoing. Foi também nessa altura que, para se opor à OPA, a administração da PT se comprometeu com níveis de distribuição de dividendos que muito contribuíram para o endividamento da empresa. Pouco depois ocorreria o caso PT/TVI, altura em que, como em nenhuma outra, se percebeu onde tinha chegado o nível de promiscuidade entre a empresa e o governo de então.
Pires de Lima tem pois toda a razão: como disse ao Expresso: a PT é “um exemplo chocante de destruição de valor”, tendo tido uma gestão “capturada por interesses particulares de um accionista” e “submissa a interferências políticas”. Tal e qual.
Assim chegámos a 2010 e à venda da Vivo. Para a PT era um bom negócio vender a sua participação, para os seus accionistas o encaixe financeiro permitia resolver muitos problemas, mas como o negócio não tinha sido antes comunicado a José Sócrates, este usou a golden share para o vetar. Porquê? Numa entrevista que então deu ao El Pais foi transparente: “os accionistas não podem violar a vontade do Estado”; “Telefónica devia ter-nos ouvido”; “um primeiro-ministro não pode deixar-se encurralar”; ou “nenhum Governo gosta que lhe torçam o braço”. Em suma: Sócrates queria ter sido parte das negociações, apenas isso. Como ficara de fora, passou a dizer que a Vivo tinha um “interesse estratégico”.
Como o casamento da PT com a Telefónica na Vivo não podia continuar, a PT acabou mesmo por vender a sua participação e, para fazer a vontade ao primeiro-ministro (e não se sabe se mais alguma coisa para além de lhe salvar a cara), por comprar caríssimo o que nem barato devia querer: uma participação na Oi, uma empresa antiquada e em perda, mas grande como tudo no Brasil é grande. Neste caso, o que era mesmo grande eram os problemas.
Pires de Lima tem novo razão: “O momento fatal para a PT foi o Governo de José Sócrates só ter acedido à venda da Vivo pela compra, a um preço exorbitante, da Oi, que era uma empresa de terceira classe”.
Não foi a golden share e as intromissões do Estado que fizeram todo o mal à PT – o resto do mal foi feito por gestores que, ao longo dos anos, a desmamaram sempre em benefício do accionista BES, e no fim, por lealdade para com Ricardo Salgado, malbarataram centenas de milhões de euros. Mas achar agora que cabe ao Estado fazer agora qualquer coisa – seja lá o que isso queira dizer, pois trata-se de uma empresa inteiramente privada – não é mais do que querer regressar a um passado que, felizmente, ficou para trás. A PT livrou-se do Estado e agora livrou-se de Salgado – deixem-na, finalmente, em paz.
Que José Sócrates vá para a RTP defender uma intervenção pública está na sua natureza, a natureza de alguém que só concebe o poder se este lhe permitir mandar em tudo, controlar tudo. Mas que Manuela Ferreira Leite faça o mesmo na TVI é mais triste, mesmo não sendo surpreendente: em Portugal não é só a esquerda que é iliberal e detesta a economia de mercado, a direita também o foi com Salazar e continua a ser no que toca à maioria dos seus “notáveis”.
Há em Portugal boas empresas no mercado das telecomunicações e a PT não deixará de ser uma delas, só se desejando que perca o carácter magestático que ainda tem, assim como o seu velho hábito de se comportar como empresa do regime e serventuária de todos os governos.
Ela não precisa de ser salva por nenhum ministro, precisa é de se salvar de todos os ministros.
Siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957).