Morreu Otelo Saraiva de Carvalho, o homem de quem um tio meu (que Deus o guarde) disse num serão, no rescaldo das Presidenciais de 1980, que “podia ter uma estátua no Rossio, se não fosse parvo”. Como análise política talvez não seja a mais acertada, afinal de contas nem o Salgueiro Maia tem uma estátua no Rossio, mas é bastante melhor e mais acutilante que as que tenho lido esta semana aos velhos companheiros de luta anti-fascista (a real e a imaginária) do major/capitão de Abril. E a coisa não pára aí: alastra à opinião generalizada dos políticos, mesmo os da social-democracia dita de direita, o mantra de que foi um personagem “controvertido” a quem muito devemos pelo que fez na noite de 24 para 25 de Abril de 1974. A isso acrescentam normalmente que a História tratará de o julgar, como se falassem da mesmíssima musa Clio. A História é um julgamento que homens de carne e osso fazem de acontecimentos passados e, se a classe política recusa fazê-lo por cobardia, conveniência ou um sentimento deslocado de lealdade, devemos ser nós, os que ainda temos alguma memória viva da época, a fazê-lo. Se possível sumário, como o Otelo gostava.

O homem terá os seus claros-escuros como toda a gente, mas a personagem política do Otelo é tão “controvertida” como uma bola de bilhar. Otelo “fez” o 25 de Abril, mas não o fez para ser o que é hoje. Melhor dito, não o fez sequer para ser o que era em 1980 quando o seu capital político estava esgotado e decidiu procurar outra via, demente, desesperada e, sobretudo, parva, para construir o Portugal que idealizou e a imensa maioria rejeitou. Agradecer ao Otelo o 25 de Abril (o pouco que há para agradecer) é como agradecer a alguém que me tenta atropelar com uma mota só porque na fuga deixou cair a carteira recheada. Em relação ao golpe de estado em si, o motivo pelo qual Otelo “poderia ter uma estátua no Rossio”, desculpem se não me levanto. Não que a acção esteja desprovista de mérito, mas não exageremos. Tratou-se de um golpe de misericórdia num regime tão moribundo como os que caíram na Grécia e em Espanha pela mesma altura, ali sem pronunciamento militar, e onde a transição para a democracia foi bastante menos conturbada. E isso deveu-se, em grande parte, a não terem permitido a personagens como o Otelo, e ao triunvirato de que ele infamemente fez parte, muito poder de facto no processo democratizante.

Se o 25 de Abril demonstra alguma coisa é a tendência para as modas políticas chegarem tarde e mal ao país. No verão de 1945, acabada a II Guerra Mundial, Salazar saiu de Lisboa para as habituais férias na sua casa no Vimieiro plenamente convencido de que já não voltava. O ditador tinha percebido o que o resto do país nem sequer vislumbrou. Que o seu regime tinha acabado. Depois, as considerações geoestratégicas da Guerra Fria e duas décadas de Pax Americana reforçaram em Salazar a ideia de que era um homem providencial e deram ao Estado Novo o balão de oxigénio que lhe permitiu subsistir durante outras três décadas. A implosão de Bretton Woods e a crise petrolífera puseram de manifesto a incapacidade de um regime que os portugueses simplesmente toleravam de acrescentar alguma coisa à sociedade. Como aliás acontece hoje com “o estado a que isto chegou”. Quando finalmente acabou, as pessoas só queriam o estado-assistencialista que o resto da Europa Ocidental já tinha, e não os modelos terceiro-mundistas que alguns propunham. Mas Portugal não só chegava tarde a essa festa, pois os estados do bem-estar europeus estavam no limite da sua capacidade de financiação (aliviadas pelas sucessivas ondas de privatizações dos anos 80, às quais nem a França de Mitterrand escapou), como chegava mal equipado, carente de liberdade económica, sem uma estrutura de capital capaz de competir nos mercados internacionais, nem poupança para produzir a riqueza interna necessária para sustentar esse modelo através de créditos ou impostos. Depois de uma década de penúrias, de delapidação da poupança privada, de nacionalizaçoes ineficientes, de hostilidade ao empreendorismo, de desvalorizações competitivas e de intervenções do FMI, o caminho encontrado pelas nossas elites foi essencialmente estender a mão a Bruxelas e criar uma rede clientelar que vive bem à custa da Alemanha e vai resistindo como pode à obrigatoriadade de liberalizar, quer dizer, de libertar um país onde o talento jovem essencialmente emigra.

Mas se Portugal chegou tarde à festa do Estado do Bem-Estar, que subsiste aqui e na Europa por via da expansão sem precedentes das contas públicas, Otelo conseguiu a proeza de chegar muito para lá da hora à política terrorista de extrema-esquerda. A finais dos anos 60, apareceram na Europa uns grupos terroristas de inspiração marxista que, na sua paranoia, queriam utilizar a violência como forma de catarse da sociedade, para que esta reagisse contra as estruturas essencialmente fascistas que a governavam. Grupos como as Brigate Rosse na Itália, o RAF na Alemanha, o IRA na Irlanda e a ETA em Espanha, que aterrorizaram a Europa durante a década de 70, foram a inspiração de Otelo na criação das FP 25 de Abril. O que o Otelo e os seus esbirros não quiseram ver foi que em 1981 já as sociedades europeias se tinham colocado quase unanimemente do lado dos governos, contra os terroristas. Nem sequer os partidos comunistas tradicionais foram excepção a esta regra. Nos anos 80, só o IRA e a ETA continuavam a matar com alguma popularidade local. Na prática porque propunham, mais que uma revolução marxista, um nacionalismo excluente, o último refúgio dos canalhas. O que o Otelo não percebeu, porque foi parvo, foi que a quase vintena de pessoas que ajudou a assassinar não foram sequer vítimas necessárias na construção de um socialismo delirante. Foram pessoas que simplesmente estavam no sítio errado à hora errada e pagaram demasiado caro a parvoíce alheia. O que os velhos compagnons de route recusaram admitir esta semana quando dizem que o Otelo foi um personagem “controvertido” foi a sua própria sociopatia, que infelizmente teve, e tem, postos de responsabilidade política no país. Otelo quis ser o homónimo herói de Shakespeare, mas não passou de Iago, o vilão incapaz sequer de justificar o mal que praticou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR