1. Dantes havia intervalos nos cinemas. Foram abolidos, ainda bem. Já a vida, o ruído dos dias, o ofício, as chatices, não se podem dar ao luxo de os dispensar, de vez em quando há fadários que precisam como pão para a boca de serem posto entre-parêntesis. O intervalo é porém um conceito interessante em si, pelo que subitamente pode pressupor tantas as “utilizações” que permite, a fantasia que despoleta.
Gosto de intervalos.
Não haverá porém melhor intervalo do que quando se agarra um livro e não nos desagarramos dele. Talvez só a música embora o exercício da comparação entre universos tão distintos – mas a que tantas vezes se procede — sempre me surja como ocioso e a “medição” entre o efeito de tais mundos sobre as nossas pobres almas, me pareça totalmente descabida. (Como diria o outro, musica ou letras, “é conforme”.)
2. De modo que no dobrar da esquina de um desses intervalo, agarrei no livro de José Cutileiro. (Abril e Outras Transições, D. Quixote). Livrinho breve, objecto muitíssimo bonito na sobriedade com que nos deita (ele, a nós) o primeiro olhar, mas pelo meu lado também não costuma escapar-me a moldura gráfica que embrulha o que me querem contar e este livro sabe-a toda: capa, tipo de letra, cheiro a papel, tamanho. O seu autor também sabe. José Cutileiro- entre algumas outras coisas e nenhuma de somenos – foi embaixador, viu muito, reteve tudo, não esqueceu nada. E um dia cinzelou a memória com uma boa ideia (e Deus sabe como é difícil ter uma boa ideia e depois domesticá-la para ela não nos devorar a nós).
Cutileiro voltou ao palco de três “transições” políticas por si vividas, na pele (e até ao osso!) do ofício diplomático: o 25 de Abril de 1974; o fim do Apartheid (estava em posto em Pretória, tendo sido das primeiras pessoas a avistar-se com Nelson Mandela, pouquíssimos dias após a sua libertação); a guerra dos Balcãs, numa esfacelada Jugoslávia pós-Tito. Três momentos históricos, fortes, intensos, decisivos, que aqui nos surjem, digamos, “ligados” por um denominador comum que é o olhar do próprio José Cutileiro — actor doublé de fino e atentíssimo observador. Óptima escolha de três questões maiores. Contada com aquele misto de arguta inteligência, indiscutível conhecimento de personagens, palco e bastidores políticos subtileza e ainda esse soupçon de cinismo que ele às vezes põe nas coisas que nos descreve, como quem agarra no sal ou na pimenta e apura um tempero. E claro, uma lucidez sem sombra de ilusão sobre quase nada — e perdoe-se-me o excesso de à vontade na afirmação — que a vida e a natureza humana conhece-as ele, como poucos. Tudo isto já não seria pouco, mas falta o melhor e aqui ele é o “vécu”. O maior interesse deste livro é justamente o ter sido ele vivido – e respirado — até ao fundo dos fundos por quem o escreve.
As três “Transições” são antecedidas, precedidas ou intercaladas por algumas reflexões sobre Portugal e a nossa indefinível (aqui não peço desculpa pelo à vontade no uso do adjectivo) condição portuguesa. Onde de novo há finíssima observação, há humor e sabor, há realidade, nas pequenas histórias que José Cutileiro desencantou da sua memória e nas pessoas a quem recorreu para as ilustrar. Com elas — histórias e pessoas — agarra numa pincelada de palavras e conta, melhor que num tratado ou em mil estudos, esta coisa (indefinível outra vez) de ser português.
3. Foi um momento roubado a mim própria, um breve intervalo numa manhã de afazeres. Entrei na Gulbenkian à procura do “Outro lado do Espelho”, como a Alice.
Mas ainda antes de me aperceber da organização do espaço na imensa sala, o meu olhar foi captado não pelo interior — a omnipresença ambígua dos espelhos nas telas –, mas pelo exterior verde que se avistava através da larga e lisa superfície do vidro das janelas. Via o jardim como se subitamente fosse a primeira vez que o via, rasgado em clareiras e caminhos e ao mesmo tempo tão poderosamente secreto, por vezes um quase bosque escondido. Árvores antigas, plantas, arbustos, folhagem densa, natureza pujante de verdes e castanhos, quem diria que era Janeiro. Outra tela.
Era — foi — difícil tirar dali o olhar. Filtrado pela luz coada da manhã, porque é que o jardim me cativava tanto? Levei tempo a deixar-me contaminar pelos espelhos e sua perturbante ambiguidade, a complexidade de significados e sentidos que eles podem projectar em cada um, num percurso através de cinco núcleos que nos são propostas para a viagem ao outro lado de cada um daqueles espelhos.
Magnifico. Fiz e refiz o percurso das cinco “estações” de uma das exposições mais inteligentes – não sei se a palavra é bem esta, talvez envolvente, talvez interpelante – que tenho visto na Gulbenkian, notavelmente bem “dada a ver” pela sua curadora Maria Rosa Figueiredo. Mas uma curadora não é afinal também ela uma criadora?
4. Falei acima de filmes sem intervalos (e sim, ainda bem: que seria dar mais tempo aos esfaimados devoradores de pipocas que se sentam ao nosso lado e nos arruínam o filme?), mas este que agora vi foi seguramente em si mesmo um resplandecente intervalo: entre mau jornalismo e tibieza humana, bom jornalismo e direiteza de carácter. Falo do “The Post”, claro, e não acredito que haja algum jornalista digno desse nome que não tenha sentido a garganta seca, um sobressalto, uma furtiva lágrima quando Catherine Graham — proprietária do Washington Post — decide que sim, “Os Papéis do Pentágono”, sim, são para publicar, sim. São, sim.
O filme é uma galopada vibrante e bem coreografada e eu que não sou desse tempo, sou ainda um bocadinho dele: o inconfundível frenesim – um frenesim exclusivo, só nosso –, a pressa, a arqui sagrada “hora de fecho”, a partida sempre sobressaltada e a alta velocidade das provas para a gráfica, primeiro em “A Capital”, depois no “Expresso, o “tudo para ontem”, a também inconfundível alegria pela “cacha” obtida, a camisola sempre vestida, o brio. Que tempos.
Mas nesses ou nestes tempos, aqueles vinte segundos ao telefone de uma mulher de meia idade, Catherine Graham/Merryl Streep, dividida e tensa, no auge da solidão e sabendo como só a ela cabe o peso, a responsabilidade e o resultado da sua decisão, valem o filme. Julgo até que não é preciso ser jornalista de vocação ou profissão (não é a mesma coisa) para perceber que se trata de uma história de carácter a propósito de jornalismo.
Um filme para todos, portanto.
5. Um só intervalo não chega para apreciar este livro: lendo-o, reflecte-se tanto quanto se aprende. Um bom ponto (A Balança da Europa, Carlos Gaspar, Aletheia).
A Europa está em declínio ? perguntamo-nos, entre o receio e a inquietação perante um hoje incerto. Dizem-no um “hoje” de mudança de rumo, será assim? Há Macron, imperial, disposto a devolver ao eixo franco-alemão o seu poder e a sua liderança; há Merkel, navegando na maré baixa, depois do longo ciclo das marés altas; há uma gente desequilibrada e perigosa no canto leste, há uns grupos organizados de extrema direita à espera e a espreita da sua vez, com muitos votos no bolso; há um sul a mudar mas nem todo na mesma direção. E há crises pesadas, dos refugiados à flagrante usura dos próprios sistemas democráticos, passando pela encalhada reforma do euro (será desta?). Avanços e recuos, súbitas ilusões (como agora, com Macron), más surpresas, desilusões, desuniões, medos. E um divórcio litigioso entre eleitos e eleitores, eis o que tem sido o pão nosso de cada dia.
Mas… é preciso ir buscar o antes disto. Voltar ao ao passado: essa longa, trágica, sanguinária, impressionante história que Carlos Gaspar – para melhor recortar o hoje europeu de que nos quer falar – ressuscita, relembra e revê. Uma lição, partitura para vários instrumentos, história, política, cultura e civilização ocidental. E conhecimento da génese de que são feitos os comportamentos humanos que ditaram as decisões e as escolhas que, sabemo-lo bem, conduziram às vitórias ou ao horror.
Europa matriz e porto ou Europa em declínio? União Europeia ou Desunião Europeia? Acreditar ou desistir? Leiam este livro.