Algures no caminho, as férias perderam o significado original: a interrupção prevista e regulamentada do trabalho. Em princípio, a dispensa do expediente bastaria para legitimar o conceito. O indivíduo entraria de férias no momento em que, provisoriamente, deixasse de aparecer no emprego sem risco de despedimento por justa causa ou obrigação de “baixa” médica. O modo de ocupação desse período deveria ser irrelevante. Ainda que torrasse as manhãs a dormir, as tardes a sublinhar “A Bola” e as noites a contemplar anúncios de aparelhos para a surdez na CMTV e na TVI, o indivíduo cumpriria os critérios que definem as férias e, na altura devida, regressaria à labuta com a sensação do lazer cumprido.
Sucede que não é assim. O consumismo contemporâneo, que os sacerdotes da esquerda e do Vaticano justificadamente condenam nos outros, decidiu que as férias só se consagram se o indivíduo for a algum lado. E não chega um lado qualquer. Reunir o agregado e arrastá-lo para quinze dias no T2 de um cunhado na Brandoa pode ser muito lindo (e é), mas não preenche os requisitos. O objectivo é ir longe, se bem que com condições. A primordial é a proximidade ao mar.
Embora uns poucos passem as férias em cidades no “estrangeiro”, de modo a poderem queixar-se dos selvagens que, ao invés deles, andam ali a fazer turismo, o mar comanda a vida da vasta maioria. As caravelas afundaram há séculos, a frota pesqueira foi desmembrada pela CEE e o país nunca cheirou uma medalha olímpica na natação. Não obstante, quem nos tira o mar tira-nos tudo. No que toca às férias, o mar é o equivalente estival dos fins-de-semana invernais na “neve” (uma obsessão que torna estranhíssima a nossa ausência nos campeonatos de esqui). Nos inúmeros inquéritos com que os confrontam, os portugueses não se limitam a gostar do mar: “não conseguem” estar a menos de 7 cm do dito. Não é esclarecido em que se traduziria tal “inconseguimento”. Se, com requintes de crueldade, mantiverem o indivíduo afastado da praia, ele sofre um ataque de pânico? Explode? Inscreve-se no PAN?
Certo é que, como dizia o poeta, há mar e mar, há o Dafundo e há Radhanagar. O gabarito das férias depende da distância entre o mar frequentado e a residência habitual do banhista. A distância ideal ronda os seis mil quilómetros, leia-se locais permeáveis aos adjectivos “exótico” e “paradisíaco” (por razões que percebo perfeitamente, os paraísos medem-se pelo afastamento face a Portugal; sobre o exotismo tenho dúvidas). Caso, por isto (€) ou por aquilo (€), o Havaí ou o Vietname não fiquem à mão, sobram os arquipélagos espanhóis ou Cabo Verde. Caso nem estes dêem jeito (€), há sempre o Algarve.
“O Algarve?”, exclama o interlocutor horrorizado (em geral, eu). “Ah, não é esse Algarve…”, sossega-nos o veraneante com um sorriso de desdém. E de seguida baixa a voz e junta a mão à boca para falar de um recanto “totalmente diferente” das Albufeiras e das Quarteiras do costume, uma Arcádia algarvia ignorada pela ralé e descoberta, presume-se, pelo próprio veraneante, um Serpa Pinto moderno e um felizardo. Ele, e os milhares de criaturas que partilham em segredo semelhante milagre.
Extravagante ou paroquial, após seleccionarmos o destino, importa alcançá-lo. Para quê? Ora essa, para descansar, nadar, comer, beber, ler, conviver, não é? Não é? Ou não é? É. E não é. Explico. Na Antiguidade Clássica, i.e., antes da invenção das “redes sociais”, as pessoas, coitadas, viam-se obrigadas por falta de alternativa a cometer de facto as actividades acima referidas. Hoje, o suplício acabou e as actividades são meramente instrumentais. As pessoas descansam, nadam, comem, bebem, etc. apenas o suficiente para fotografar tão grandiosos eventos, publicar as fotografias no Facebook, no Instagram e Noquecalha e provar aos amigos (força de expressão) o muito que descansam, nadam, comem, bebem, etc. Limitar o tempo perdido em disparates permite dedicar o tempo ganho à manipulação do telemóvel, a trocar figurinhas no campeonato da felicidade de que todos saem vencedores.
É aqui que um destino remoto é fundamental. Um “post” no Facebook ilustrado pelo retrato da família a trucidar sardinhas no quintal do cunhado não suscita mais de doze “likes”, nove de pena, dois da família e um de inveja, este a cargo do desgraçado que nem da Brandoa pôde desfrutar. Imagens de termómetros, tremoços, pés e criancinhas também não favorecem a aura cosmopolita. Impõe-se, pois, a identificação geográfica da “selfie”, a qual, no meio da esplanada, dos cocktails e do sushi e do livro (a escolher), convém incluir um cartaz toponímico das Maldivas, uma enseada típica de Barbados ou, em desespero, um ex-libris algarvio, por exemplo o inglês bêbedo ou o arquitecto cego.
O assunto vem a propósito de quê? De nada. Acontece que a crónica pediu férias do dr. Costa, do prof. Marcelo, da dona Catarina do alojamento local, dos comunistas festivos, da oposição muda e, em suma, de um país que, contado ou visto, não se acredita. E eu dei-lhe férias. Em Outubro, espero, a crónica retribuirá a generosidade.