As imposições absurdas e totalitárias de confinamento do ano passado, permitiram-me, contudo, a bênção duns meses no campo, começando ainda com os frios do Inverno e acabando nos princípios do Outono.

O contacto com o real da terra, a naturalidade do passar das estações do ano, o silêncio imenso de um mundo sem automóveis e aviões, a ausência de um sem número de eventos sociais e familiares, a possibilidade de estender o fim do dia a contemplar o pôr-do-sol e os inúmeros serões à lareira, acabaram, de certa maneira, por preencher o vazio que podia ter ficado de uma vida que teve de mudar por completo.

A vida campestre tem mais tempo: começa mais cedo, os dias demoram a findar e os serões parece que não acabam. Acordamos com o Sol a Nascente, vemo-lo subir durante a manhã até ao seu zénite e a tarde passa lentamente à medida que a luz do dia se vai pousando para lá do Atlântico, que fica já ali por detrás das colinas de Poente. Aceso o fogo para a noite, esta dura enquanto houver lenha no cesto.

Faz-nos muita falta este tempo, que nos permite a contemplação das coisas criadas, e nos volta a trazer à realidade de que vivemos tão alheados.

Nas horas vagas que todo esse tempo a mais me concedeu, entretive-me, não só, a salvar roseiras deixadas à inclemência das intempéries e à insensatez dos homens ou a encontrar formas de fintar as regras estabelecidas para assistir a uma Missa clandestina – que durante muito tempo só encontrei em Rito Tridentino –, como ainda a redescobrir vários outros tesouros que uma quinta antiga sempre esconde.

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O abandono das terras impede-nos hoje de admirar uma das grandes obras da tenacidade dos nossos maiores: os muros rústicos construídos com a pedra desenterrada no cultivo das leiras, que distinguem as terras que são de um e de outro, separando, não o trigo e o joio, mas uma courela de milho duma de azeitona, ou os pomares de fruta dos terrenos de pastagem. Muros que seguram há séculos os socalcos plantados nas encostas ou bordejam os ribeiros conduzindo-os ao leito certo do rio que deles se alimenta e lá em baixo, nas várzeas, corre mais largo e sossegado.

Muros que marcaram profundamente aqueles lugares, sulcando-os, ordenando-os e dando-lhes o sentido preciso.

Muros que já ninguém faz, submergindo os antigos sob terra e carrascos.

A extinção das antigas linhagens dos que trabalhavam e possuíam aquelas propriedades agrícolas há muitas gerações, a incúria e indolência dos seus descendentes ou a sua total ausência pois que partiram em busca da moderna ilusão das cidades deixando o que sempre foi seu, desprezando a herança deixada pelos que cuidaram e limparam esse património com tanto esforço e amor, deu espaço livre ao mato e às ervas daninhas.

Não serve de consolo as amoras que nascem das silvas espinhosas e feias que cobrem os nobres muros antigos. São frutos, é certo, mas escassos, a maioria comida pelos pardais e que se colhem apenas com muito esforço.

Tenho-me entretido a descobrir esses muros, que se mantêm apesar de tudo, vestidos da nobre pàtine que só um tempo mais longo que qualquer geração ainda viva sabe dar. Aos mais descuidados ou sujeitos às forças das águas ou dos ventos ou da maldade dos homens que não respeitam a sua honorabilidade secular, faltam-lhes pedras no devido lugar. Mas perto se encontra sempre como os completar, provavelmente até com as próprias pedras que deles se desgarraram e rolaram para o chão. Ou basta apenas ajeitá-los um pouco, calcando aqui quando alguma coisa os levantou demais, ou calçando-os ali com umas pedrinhas nas fendas de maneira a repô-los no seu lugar.

Um deles – de pedras brancas, musgosas e grandes – apareceu-me este ano por detrás duma selva de roseiras-bravas e de bem-cheirosas madressilvas, que trepavam e afogavam os zambujeiros que cresceram ao abrigo daqueles muros, acabando mesmo por servir de seu sustento. As pobres árvores começavam a sucumbir ao peso daquelas trepadeiras que lhes sugavam a seiva e lhes tapavam o sol, ainda que ao longe traiçoeiramente se confundissem com a sua copa. Passei dias a puxar por aquelas lianas com garras, a procurar-lhes a raiz teimosa para as arrancar de vez, libertando os pobres zambujeiros e descobrindo então um tesouro ainda maior.

Foi um assombro quando se revelou aquele muro em toda a sua alva e genuína pureza.

Quem se teria dado ao trabalho de o construir, se cada pedra é quase inamovível pesando uma tonelada? Mais parecia que nascera da própria terra pois com ela tanto se confunde, cumprindo há séculos mas com toda a naturalidade a hercúlea tarefa de segurar o aluvião das chuvas que escorre furioso no Inverno das zonas mais altas que ali desemboca. Sem esse muro, tudo o que para cima dele está já se teria há muito gorado para a barragem que abaixo se encontra. Tem-no feito sem que ninguém o saiba, até que agora o descobri. Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova.

Percebi porque durante séculos ali se mantém aquele muro aparentemente sem préstimo e que hoje nunca seria feito assim, mas como nem mesmo a voragem da era moderna foi capaz de pensar, sequer, em destruí-lo, mesmo quando há umas décadas a quinta levou uma grande volta. Por ser insubstituível, irrepetível e irreplicável.

Um muro de alvenaria, rápido e barato de levantar, nunca conseguiria cumprir aquela função. Em pouco tempo racharia e não duraria uma geração sem que fosse preciso reformá-lo. Um muro de pedra demora anos e anos a fazer, porque é pensado para durar uma eternidade.

Um muro de cimento armado, por sua vez, seria por demais inestético e chocaria pela sua falta de enquadramento com o entorno natural daquele espaço, para além de que está por provar a sua durabilidade, pois ainda não passou tempo suficiente para o poder certificar como uma solução tão duradoura como um muro de pedra natural. Este tem séculos de qualidade comprovada.

Um muro de pedra natural ajeita-se ao terreno, deixa respirar a terra permitindo a sua drenagem de maneira a que as raízes do que se plante no terreno não sufoquem com excesso de água, dá abrigo à bicharada que tanta falta faz para mexer o subsolo e comer as pragas e pode ser levantado em qualquer lugar, com a pedra que ali se encontre.

Mas sobretudo é firme e robusto, duma beleza extraordinária – palavra tão bem escolhida por Bento XVI para o Rito Antigo – que se deixa embelezar ainda mais pelo passar do tempo, confundindo-se com a terra que o envolve. Nada tem de artificial ainda que seja assombroso, como se criado pelas próprias mãos de Deus. Como uma Missa Rorate: só Deus poderia criar beleza tamanha.

O muro de que V. falei faz parte daquele lugar desde tempos imemoriais. Querer tirá-lo dali era inconcebível para as gerações milenares que aquele muro serviu. Para as actuais gerações, apesar de conhecerem outras técnicas e possibilidades, seria em todo e qualquer caso incompreensível.

Post Scriptum: O Autor destas linhas – escritas após a publicação do Motu Proprio Traditionis custodes, de Sua Santidade o Papa Francisco – é, graças à infinita misericórdia divina, um simples freguês duma normal Paróquia de Lisboa, onde se atreve a assistir à Missa em Rito Ordinário sempre que pode e sem qualquer reserva mental, ajudando o seu Prior e demais comunidade em quanto lhe vai sendo imerecidamente pedido. Uma das maiores graças que teve na vida é a de viver ao lado de um dos mais belos templos da Capital, bastando-lhe olhar às suas pedras para que a sua Fé se renove todos os dias. Para seu enorme incómodo veio a tornar-se, ao estilo de Nicolás Gómez Dávila, alguém que não se pode calar mesmo sabendo que os ventos da história sopram contra si, porque a sua liberdade interior lhe revela que as causas que defende, ainda que perdedoras em determinado momento, têm o seu valor, designadamente que a Verdade é só uma, por mais que seja dito em contrário: Jesus Cristo, o mesmo ontem hoje e por toda a eternidade. O Autor destas linhas é absolutamente fiel ao actual Santo Padre e a todos os 265 Papas que o precederam.