In memoriam de António Luiz Gomes et alii

A tua citação d’A Cidade de Deus, meu velho Afonso, fez-me lembrar aquela outra frase que abre a Didaqué, onde ,provavelmente, Santo Agostinho se terá inspirado para a sua obra – existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte, e é grande a diferença entre os dois.

E continua assim aquele pequeno Catecismo dos primeiros cristãos: no caminho da vida deve amar-se a Deus que nos criou e ao próximo como a nós mesmos; não matar; não cometer adultério; não fornicar; não roubar; não praticar feitiçaria; não matar a criança no seio de sua mãe nem depois de nascida; não corromper os jovens. É o decálogo milenar já em tom evangélico. Doi mil anos depois constatamos, consternados, quão nos afastámos desse caminho… Quando se terá dado essa viragem, parecendo agora tão difícil corrigir a rota?

Perscrutar a História à procura desse momento-chave é tarefa de resultado eventualmente incerto ou subjectivo, até porque os homens – eu primeiro (mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa) – sempre se mostraram naturalmente rebeldes ante os mandamentos divinos. Por isso mesmo, eles nos foram dados e escritos na pedra, sendo-nos relembrados constantemente, por diversos mensageiros, de variadíssimas formas, mas sempre com a mesma letra e propósito.

Surge evidente, todavia, ser a nossa época um tempo de orgulhosa revolta contra as regras ditadas pelo Criador desde o princípio dos tempos. A quem me queira já acusar de retrógrado, adianto que não penso que o passado seja um poço de virtudes que deva simplesmente ser desenterrado, desempoeirado e imposto às gentes do século XXI, porque antigamente é que era bom. É evidente que, agora como antes, o mistério da iniquidade nunca deixou de ensombrar e seduzir os homens, que sempre foram caindo nos seus enganos, vendendo a sua alma em troca de um prato de lentilhas.

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Contudo, reiterando que a natureza humana, depois de expulso Adão do Paraíso, é a mesma ontem e hoje, é impossível não estabelecer uma clara distinção com o antes e o agora, porque é paradigma do nosso tempo que a iniquidade de sempre se veja cada vez mais concretizada em políticas públicas e positivada através de legislação nacional e supra-nacional.

Transforma-se o que antes era mal em bem. O que era preto, agora é branco. Ou vice versa. Tudo isto acontece sem que haja um rebate de consciência quanto à tamanha deslealdade que isso demonstra para com as gerações que nos antecederam, ou que se descubra aí uma incoerência confrangedora de pensamento. Tudo começa nessa inimizade profunda do homem contra Deus, dos homens contra os homens. Já ninguém se conhece, a si mesmo ou aos outros, não se sabe donde se vem, o que se é e para onde se vai. No fundo, já não se ama a vida e por isso nada se constrói, nem para si e muito menos para os outros. Nada se faz que dure. Nada se quer que dure.

Só se conhecem as coisas que se cativam – disse a raposa. – Os homens já não têm tempo para conhecerem seja o que for. Compram coisas já feitas nos comerciantes. Mas como não existem comerciantes de amigos, os homens já não têm amigos.

Mal sabem os imprudentes poderosos de agora, que o que hoje defendem como bem, amanhã será tido como um mal a exterminar, exactamente na mesma medida e pelos mesmos argumentos e meios com que, do alto da sua ignorante prosápia, alteraram a ordem universal e natural das coisas. Seria uma ingenuidade a lamentar se aí não se encontrasse tamanha maldade a combater.

Vemos isso acontecer em todos os cantos e recantos da sociedade. Vemos isso ser promovido com violência pelo poder temporal. Também, valha-nos Deus, e em certa medida, pelo poder espiritual. Spes contra spem

É preciso proteger bem as candeias: uma rajada de vento pode apagá-las…

É a consequência óbvia da soberba do homem, com origem no princípio dos tempos é certo, mas que agora se transformou em revolta aberta, desavergonhada e sem arrependimento contra não só a Criação, mas sobretudo o Seu Criador e todas as suas criaturas. É cada vez mais patente a vontade de se romper em definitivo com a Nova Aliança. Mas esta é eterna.

Procurei nestes meses de reclusão algumas respostas. É sina, aliás, a que não consigo escapar, tal a avalanche de novidades, invenções e reinvenções com que semanalmente nos deparamos e que nos deixam embasbacados. E com as origens mais insuspeitas e inesperadas.

Ciente da minha incapacidade – provavelmente a minha única virtude -, procurei-as naqueles que viveram momentos porventura mais angustiosos do que os nossos, e os pensaram e meditaram com a profundidade que só o tempo de antanho permitia. Como Jorge Luís Borges, salva a inultrapassável distância, orgulho-me mais do que leio, que do que escrevo. Aproveito assim para responder aos muitos que me perguntam a razão de acumular tantos livros. Se ainda não sei nada?…

Vejo-me, aliás, cada vez mais cativado por aquele saber que não tem uma aplicação prática imediata, que é plenamente gratuito, que constitui um fim em si mesmo, no fundo, não fora o facto de ser a forma mais universal do ponto de vista humano que o homem sempre usou para se elevar da sua condição primária. Até a educação, hoje, é tratada em termos materialistas, tendo sempre finalidades económicas em vista. Tal como a arte, nas suas diversas modalidades, da música à pintura, do cinema à escultura. E a própria literatura. Já não importa se nos eleva pela sua beleza, mas se é útil e/ou se vende. Nada mais distante do romance que sempre houve – que é necessário haver para se ser verdadeiramente – entre os homens e o saber (v.g. 1Reis 3, 1-14; Provérbios 4).

Conheço um planeta  onde vive um senhor afogueado. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou para uma estrela. Nunca gostou de ninguém. Nunca fez nada além de contas de somar. E, como tu, passa o dia a dizer: “Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!” todo orgulhoso. Mas aquilo não é um homem, é um cogumelo!

A minha história de amor com os livros, que começou cedo, transformou-se em paixão febril depois de passar uns tempos atrás do balcão de um alfarrábio que um amigo, na sua inocente confiança nos homens, tentou fazer vingar sem sucesso numa das grandes avenidas de Lisboa. O sítio era péssimo. Ninguém lá entrava. Só eu. Passei horas e dias abandonado entre verdadeiras preciosidades e muitas curiosidades. Ganhava à jorna, torrando no dia seguinte, nos livros que era suposto vender, o que de véspera recebera. Ao fim da tarde, lá vinha o Luís Abel Ferreira saber como tinha corrido a coisa. Para o animar, contava-lhe que tinha vindo este e aquele cliente, que havia mostrado mais interesse por um tema ou outro, que procurava um determinado autor ou uma esquecida obra. Sempre que olho as lombadas que me vão trepando pelas paredes como vinha-virgem, lembro com muita saudade essas mentiras piedosas que te contava, meu desventurado amigo…

É triste esquecer um amigo. Nem toda a gente tem a sorte de ter tido um amigo. Descansa em paz.

Falo da sabedoria que, naturalmente, não vem apenas dos livros e é exclusiva dos mais cultos, mas também da que cresceu espontaneamente, desde tempos imemoriais, como as antigas florestas de carvalhos ou os caminhos de pé-posto, que passa de pais para filhos e de avós para netos: pelas palavras, cantigas e histórias cheias de alma, mensagem e ensinamentos; pela forma de fazer as coisas com o seu rito e ritmo apropriados; pelo modo de escolher entre seguir uma via ou a outra com extraordinário bom-senso e de saber de experiência feito.

Vivia-se muito antigamente, havia sempre muito que contar: já hoje, a vida é bastante monótona e sensaborona. Perdemos o tempo. E perdemos muito tempo.

Era um comerciante de uns comprimidos inovadores para matar a sede. Tomando um por semana, deixa-se de sentir necessidade de beber.
Porque vendes isso? – perguntou o principezinho.
Porque é uma grande economia de tempo – disse o comerciante. – Os peritos fizeram as contas. Poupa-se cinquenta e três minutos por semana.
– E o que se faz com esses cinquenta e três minutos?
– O que se quiser…
“Se eu tivesse cinquenta e três minutos para gastar, aproveitava para ir calmamente até uma fonte…”

Passei a minha infância rodeado de pessoas das mais distintas origens. Uns e outros passaram-me com comovedora generosidade o que tinham recebido e o que tinham de próprio para dar. Serviu-me de adubo as histórias contadas pelo meu Avô Paterno, dos pastores do Alentejo que combatiam com as próprias mãos, umas pedras e um cajado, os lobos que rondavam o rebanho – hoje, as ovelhas são deixadas ao Deus-dará. E de rega a imensa erudição e cultura do meu Avô Materno, figura veneranda e elegante, de cabeça bem penteada e envolta no fresco cheiro da lavanda Ach Brito, que à cabeceira duma vasta mesa, sempre com talheres de prata porque não havia outros, a abençoava sempre com as mesmas palavras e as suas mãos impressionantes de pugilista.

Fortaleceu-me a raiz, tanto a forma como o primeiro amorosamente escolhia o melhor melão do mercado para o almoço, num ritual que podia durar meia manhã, herdado das terras quentes do Vimieiro; como as passeatas intermináveis pela Lisboa do antigamente que dava com o segundo, de bengala ou guarda-chuva, com a sua fresca gabardina de Verão ou o grosso sobretudo de Inverno. Passeios que eram interrompidos ,ou por um almoço num Club do Chiado ou para assistir à Santa Missa. Voltas onde aprendi a beijar a mão às Senhoras que parávamos para cumprimentar e a ajoelhar piedosamente ante o Santíssimo que sempre acabávamos por visitar.

Tudo tinha o seu sentido, repleto de profundo significado. Como diria o meu saudoso Sogro, que nestas linhas também evoco: o fazer das coisas tinha sempre a sua liturgia própria.

– Os rituais são necessários.
–  O que é um ritual? – perguntou o principezinho.
– É outra coisa que as pessoas também já esqueceram – disse a raposa. – É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora diferente das outras horas.

Assim é o emaranhado tecido ancestral da minha família – e de tantas outras -, feito de fios das mais variadas proveniências, num entrançado de ouro e de ráfia. Uma terra boa, feita da generosidade do agricultor, duma mistura de húmus, estrume e areia, com sombra e sol na justa medida. E isso permite que o tronco viceje, assim o queira quem tanto recebeu, e venha chuva que o alimente.

Com maior ou menor conforto, com boas ou nenhumas heranças, era gente cuja vida foi um constante sacrifício, seja no vulgo sentido que hoje é dada a esta palavra tão rejeitada – que é a de dar a sua vida pelos outros -, como no seu mais clássico radical, de sacrum facere, isto é, de fazer do que se faz uma coisa sagrada, agradável aos olhos de Deus. E assim puderam entregar a sua alma ao Criador com invejável serenidade, como a criança que se deixa cair confiante nos fortes braços do Pai.

Só as crianças sabem o que procuram.

Sem o saber antes, mas não por acaso certamente, os vários autores de que me socorri nestes seis meses de “confinamento”, partiam inspirados por um escritor que descobri ser fundamental: Antoine de Saint-Exupéry. Confesso que nunca lhe havia dado o devido valor. São d’O Principezinho as intercalares deste texto que não tem um propósito concreto. Simples memórias duma época à espera de significado.

Nestes tempos de confinamento, estava a abrir a Semana Santa, fugimos da clausura e pânico que se vivia na cidade para o campo, onde se podia sair à rua, com chuva ou sol, onde ficámos até ao dourar das folhas de Outono.

Nos princípios de Maio, um terrível acidente de automóvel levou inesperadamente o meu Tio mais velho e Padrinho, António Luiz Gomes, homem querido por muita gente e a quem muita gente fez bem. Um homem de alma branca, que não perdeu o seu tempo, que deixou um rasto estelar. Foram centenas e centenas os testemunhos do tanto que deu de si, na sua simplicidade e com os seus impressionantes silêncios. Firme nas suas convicções e na sua Fé, era de uma candura enternecedora, duma inabalável cortesia, duma inesquecível caridade com os demais. Deitou profundas raízes. Tornou a sua vida em algo de sagrado.

– Os homens?… Acho que existem uns seis ou sete. Vi-os há uns anos. Mas nunca se sabe onde estão. O vento leva-os. Não têm raízes, o que lhes causa muito transtorno.

Há uns tempos, quando começaram as fobias com a limpeza dos terrenos por causa dos incêndios, lembrei-me de um antigo roseiral, abandonado às silvas, destinado a ser cegamente dizimado. Na esperança de ali ainda encontrar alguns pés de roseira, que porventura tivessem teimado em não sucumbir apesar dos espinhos que os sufocavam impiedosamente, procurei-os a Primavera passada, mas como há muito não davam qualquer flor e altos eram os carrascos que os cobriam, a busca foi infrutífera.

Não desisti. No último Outono, antes das primeiras chuvas, aproveitando as tréguas dadas pelas ervas daninhas que o Verão havia secado em parte, atrevi-me a entrar pelo matagal adentro qual Príncipe Encantado, e ali encontrei a minha Bela Adormecida. Abri um túnel à espada por onde o meu corcel pudesse passar, derrotei o dragão que protegia aquele castelo tenebroso e, apesar de ferido e dorido, consegui resgatar quem tanto procurei.

Estava fraco aquele pezinho de roseira. Ao levantá-lo, a sua raiz não ofereceu qualquer resistência pois já quase a não tinha de tanto que a sugaram aqueles parasitas. Mas estava vivo!

Limpei-o, podei-o, curei-lhe as chagas, envolvi-o de todas as atenções. Tinha-lhe já preparado um lugar onde se pudesse tornar naquilo para foi criado, com o Sol suficiente e alguma sombra retemperadora, protegido do vento. Alojei-o num solo com boa drenagem e boa terra onde se pudesse alimentar convenientemente e as suas raízes pudessem crescer com liberdade. Tratei de o regar com moderação: as roseiras não precisam de muita água. No tempo devido, podei as suas primeiras hastes, guiando-as para que aquele pé, que há uns meses tinha encontrado tão definhado, se tornasse numa bonita roseira.

Depois das chuvas de Abril, despontou o primeiro botão e, por fim, uma linda rosa se abriu, com uma corola de pétalas perfeita de cor magnífica. Há anos que aquele pé não floria. Foi comovedor.

Findo este Verão, preparei-a para os rigores do Inverno. Deixei-a adubada e podada e velarei para que na próxima Primavera muitas mais flores dela possam nascer.

Vou confiar-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. (…) Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante. (…) Os homens esqueceram-se desta verdade – disse a raposa. – mas tu não deves esquecer-te dela. Tornas-te para sempre responsável por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa…

Nas palavras de Gustave Thibon que num desses livros encontrei (El silencio de Dios, de Rafael Gambra), “a Cidade dos Homens estava feita de um conjunto de laços vivos e vividos que, através dos diferentes níveis da Criação mantinham o homem unido à sua origem e o orientavam para o seu fim. A casa, a pátria, o templo protegiam-no contra o isolamento no espaço; os costumes, os ritos, as tradições, que o faziam gravitar em torno de um eixo imóvel, elevavam-no acima do poder destrutivo do tempo.”

Sem recriarmos a Cidade dos Homens, meu Caro Amigo, nunca chegaremos à Cidade de Deus. Talvez um dia consiga explicar como.