Jaime Nogueira Pinto (JNP) constrói no seu artigo publicado no Observador um enredo subtil que, embora não tendo má intenção sofista, ilude a verdade e subverte a realidade dos factos.
Diz JNP que a Alemanha, a Holanda, a Áustria e a Finlândia, a que chama depreciativamente “os financeiramente correctos” são países profundamente egoístas por serem avessos ou recusarem a emissão de coronabonds. Refere ainda que os governos destes países só se mostram preocupados com o “déficit” e apenas querem uma União Europeia “para os tempos fáceis”.
Desde logo JNP parece fazer a habitual confusão entre variáveis fluxo e stock. Do que veio reportado na imprensa, os países supostamente “malvados” têm objecções de princípio a níveis de dívida pública astronómicos como os de Portugal ou Itália. Não estariam demasiadamente preocupados com o valor dos déficits em situações de excepção como a da epidemia que nos faz companhia neste momento, não fosse dar-se o caso de os países pretensamente “vítimas” terem, recorrentemente e ao longo de décadas, despesas públicas acima dos valores que recolhem através de impostos. A reserva dos Estados hipoteticamente “facínoras” é, aliás, maior porque num passado não tão distante quanto isso acudiram a situações de insolvência dos países “injustiçados” na expectativa de que estes mudassem de vida após uma situação de aperto e se tornassem entidades de contas razoavelmente certas e gastos parcimoniosos.
Só para que nos entendamos: a Alemanha tem uma dívida pública de 62% do seu PIB, a Holanda de 53%, a Aústria de 74% e a Finlândia de 59%. Já Portugal, como se sabe, ultrapassa os 122%.
JNP esquece algumas coisas. Primeira: se os países “anti-coronabonds” estão em condições de ajudar os outros é porque criaram riqueza suficiente e pouparam em medida tal para que não haja dúvidas fundadas quanto à sua solvência para o nível de dívida que têm actualmente. Já os países “pro-coronabonds” acumularam um stock de dívida pública tão exagerado que já não há margem para distender o déficit durante o período económico mais conturbado sem que os credores tenham uma percepção de risco enorme e sério receio de nunca mais serem ressarcidos dos seus empréstimos.
Desde logo é crucial que as pessoas e as sociedades sejam livres nas suas opções, mas responsáveis pelas decisões que tomam. A seu tempo os países frugais (como também lhes chamam) optaram por reformar a sua sociedade e o âmbito de actuação do Estado. Nós, legitimamente e por vontade popular optamos por não reformar. Ou, melhor dito, optamos por dar ao Estado um peso cada vez maior nas nossas vidas e permitimos que se endividasse a tal ponto que, em momentos de aflição como a covid19 (ou outros), o próprio recurso a mais dívida se torna extremamente difícil. Ora, não é legítimo sugerir que a responsabilidade dos nossos actos e imprudências seja de terceiros.
Outra coisa que JNP esqueceu é a de que é absolutamente racional e um dever básico que os países “maus” tenham noção do risco de incumprimento por parte de Portugal, Itália ou mesmo Espanha. O dinheiro alemão ou holandês não é dos respectivos Estados, mas sim de cidadãos concretos a quem lhes foi subtraída parte dos seus rendimentos. Os contribuintes desses países não são Portugueses, mas são gente respeitável também. Mal fora que os governos destes países desconsiderassem esta circunstância.
JNP esqueceu ainda um outro facto indesmentível: dívida agora significa impostos futuros. Quer JNP deixar às gerações mais novas e aos portugueses vindouros um peso de obrigações de que não foram responsáveis e condicionar de forma dramática a possibilidade destes desenharem o seu próprio futuro com um mínimo de liberdade? A solidariedade inter-geracional passa pelos mais jovens e os que ainda nem sequer nasceram pagarem os desvarios e esbanjamento de quem se lhes antecedeu na história?
Mas, como JNP coloca a questão quase do ponto de vista deontológico e não tanto do utilitarista, vou-me abster de comentar os resultados que invariavelmente se verificam quando se fornece droga a quem tem comportamentos aditivos de estupefacientes ou o que é de esperar quando se cede a chantagistas.
Digo antes que a verdadeira caridade parte da vontade livre de quem a oferece. Caridade não é responder a pedinchar de mendigos. Gostaria também de salientar que não constitui obrigação moral a nenhum Estado acudir a situações de má gestão pública e falta de previdência de terceiros países.
A quem já beneficiou de ajuda externa e mais do que uma vez como Portugal, se não sabe viver com os seus próprios meios nem tem nenhum pudor de ainda assim fomentar o esbulho das pessoas e dos seus contribuintes que criam riqueza, seria de bom tom não esquecer de a ajuda que já teve. Se não agradece, pelo menos, deveria ter o recato de não se sentir credor de direitos que não tem.
É de elementar decência não exigir dos outros a manutenção do país numa situação de dependência de terceiros e parasitismo compulsivo.
O preço a pagar pela liberdade é elevado, mas define um povo.