Quantos jogadores vencem a Taça/Liga dos Campeões? É pá, isso agora… Quantos jogadores vencem a Taça/Liga dos Campeões e sagram-se melhores marcadores nessa época de glória? É lá, deixa-me cá ver. Nove: Di Stéfano, Puskas, José Águas, Altafini, Müller, Van Basten, Kaká e Cristiano Ronaldo. Quantos jogadores vencem a Taça/Liga dos Campeões, sagram-se melhores marcadores e ainda levantam o troféu na qualidade de capitão? Esta é fácil. Só um: José Águas, em 1961. E é dele que vamos falar.
Nasce em Luanda e cresce no Lobito, onde o pai trabalha na fábrica de açúcar na Catumbela. “Perdi o meu pai muito cedo, aos três anos e meio. Chamava-se Raúl António Águas e era pugilista amador, mas dos bons, pois dizem-me que se batia, e bem, com os estrangeiros. Era forte, dos pesados. Era franzino, embora rijo.” Forte? Ora aí está uma característica inexistente em José. “A minha mãe, receosa da minha aparentemente fraca compleição física, não me deixava jogar futebol senão em casa. O que era um problema, porque quando a bola – a mágica bolinha – aparecia era uma alegria que nunca mais acabava. Que tardes no areal da praia atrás da minha casa.” Só que o talento natural supera qualquer medo, até o maternal.
Aos 15 anos, José atira-se à vida e vai trabalhar como dactilógrafo na Robert Hudson, empresa concessionária da Ford. Facilmente se lança na equipa de futebol da firma, ao mesmo tempo que pertence aos quadros do Lusitano Sports Clube. Um joga ao sábado, outro ao domingo. Num determinado fim-de-semana, o caldo entorna-se. “Os directores do Lusitano não queriam deixar-me jogar na véspera do desafio que lhes interessava. Para contentar ambas as partes, pedi-lhes para me deixarem jogar só um bocadinho no sábado, saindo logo que estivéssemos a ganhar. Concordaram, mas foram fiscalizar para o campo.” E agora? “Entrei a jogar e marcámos dois golos. Saí, como tinha ficado combinado, mas, passado um bocado, os meus colegas consentiram o empate. Voltei a entrar e daí a pouco o resultado passou para 3-2. Pedi para sair e novo empate se registou. Lá tive de entrar outra vez e então fiquei até ao fim. Acabámos por ganhar, salvo erro, por 4-3.”
As aventuras futebolísticas seriam intercaladas com os primeiros amores. “Gostava imenso de estar na praia, com a minha irmã e mais três ou quatro raparigas, numa brincadeira infinita. Nasceram-me os primeiros e tímidos pêlos da cara, arrefecera o meu entusiasmo pela bola.” Até quando? Em 1950, José Águas, com 19 anos de idade e já um benfiquista ferrenho por influência do pai, vive um dia de glória aquando da vitória do Benfica na Taça Latina, precursora da Taça dos Campeões, numa final inacreditável de 260 minutos com o Bordéus. No dia seguinte, um jornal local publica o poster dessa equipa e José Águas cola-o na parede do seu quarto. No mês seguinte, quando o referido poster já está amarelo de apanhar tanto sol, o Benfica chega a Angola para uma digressão de início de época.
Dos 15 jogos previstos, o oitavo é com a selecção do Lobito. “Fui convocado para fazer parte da selecção. Na primeira parte, joguei a avançado-centro. Na segunda, a extremo-esquerdo. Ganhou a selecção do Lobito por 3-1 e marquei dois golos.” É o primeiro grande passo de Águas rumo à glória. “Recordo-me perfeitamente do primeiro golo. Por sinal, um grande golo, modéstia à parte: fugi ao Jacinto para o centro do terreno, recebi a bola pelo ar, parei-a com o peito, desceu ao pé direito e zás, o amigo Contreiras nada pode fazer.” A este propósito, é curioso reler um artigo do jornalista angolano Arlindo Leitão sobre esse jogo único: “Foi num sábado húmido e frio. Ao intervalo, registava-se empate a um golo. O inglês Ted Smith, técnico do Benfica, perguntava a toda a gente qual era a idade do avançado local, um jovem alto e magro, que o tinha impressionado durante a primeira parte e que lhe parecia muito jovem.” Antes do primeiro minuto após o intervalo, Águas faz o tal 2-1. “Quando todos esperavam o golo do empate, Zé da Barca ganhou a bola, endossou-a a Mena Pavão que, de imediato, a colocou ao alcance de Águas e este fez o seu segundo golo. Assustados com o barulho da multidão, os flamingos que estavam no mangal, atrás da baliza onde o sol se põe, levantaram voo sobrevoaram o campo, como que a homenagear os jogadores do Lobito e, em particular, o atrevido Águas.”
Ainda nesse dia, Águas encontra-se com Ted Smith no hotel do Benfica e arrumam o assunto com dois dedos de conversa. “Falei com os meus irmãos e chegou-se à conclusão de que eu, com quase 20 anos, podia muito bem tentar a sorte.” Dias depois, o Benfica abandona o Lobito e leva consigo um novo elemento, vestido com o casaco do clube, oferecido pelo próprio treinador inglês. Nos três jogos até ao fim da digressão, Águas marca seis golos, três dos quais na estreia, em Sá da Bandeira, frente à selecção do Huíla-Lubango – e atenção que ele só entra a 25 minutos do fim. “Aqueles dez dias de alegre convívio com a rapaziada deixaram-me uma saudade grande e um desejo enorme de que estes dias passassem rapidamente.” Quem o diz é José a uma segunda-feira, 18 Setembro 1950, dia em que aterra pela primeira vez em Lisboa.
O resto é história. Que vale a pensa contar. No primeiro jogo, com o Atlético, na Tapadinha (2-2), para a segunda jornada do campeonato, Águas passa completamente ao lado do jogo. Não acerta nem uma. O central Armindo adivinha-lhe todos os lances. “Nunca mais esquecerei aquele túnel que dá acesso ao campo. Quando entrei na Tapadinha, senti-me tão pequenino e tão desorientado que me deu vontade de chorar e pedir que me tirassem dali.” Além da valentia dos centrais do Atlético, dignos da expressão “faca na liga”, há dois pormenores engraçados à luz do aqui e agora: primeiro, Águas nunca jogara num relvado e só se treinava uma vez naquele tipo de campo, uma semana antes, no Jamor; segundo, Águas nunca jogara de chuteiras com pitons. “Nunca tinha visto aquilo. Fiquei desnorteado e fiz um jogo muito mau.”
A reacção é imediata. Uma semana depois, a 2 Outubro 1950, no Campo Grande, o Benfica dá 8-2 ao Braga e Águas marca quatro golos. “Quando os companheiros me abraçaram no meu primeiro golo, senti lágrimas nos olhos e nasceu-me cá dentro uma vontade férrea de lutar com mais entusiasmo ainda.” Escreve o jornal Record: “Talvez tenha surgido um novo astro no firmamento do futebol português.” Talvez? De certeza, meus amigos. Águas joga à bola como poucos. Curiosidade dessa época de estreia na 1.ª Divisão em que festeja 23 vezes: só uma vez é que marca apenas um golo (Estoril); de resto, seis bis e dois hat-tricks (Oriental e Vitória FC). Dos seis bis, um é ao Sporting, em Dezembro 1950. “Quando cheguei ao Estádio Nacional, ia amedrontado. A fama de Azevedo já tinha chegado a África, onde é um dos grandes ídolos do público. No princípio do jogo, até tinha medo de saltar com ele, só com receio de o magoar. Caí, isso sim, por via de um choque com um defesa do Sporting. O Azevedo socorreu-me e disse-me ‘Levanta-te que a relva está molhada e faz-te mal’. Só lhe perguntei se tinha sangue na cara e ele riu-se, antes de me dar uma palmada de amizade. Isso impressionou-me e mostrou-me a sua elevada noção de camaradagem.”
No meio desta euforia, é natural a recompensa com a chamada à selecção. Convoca-o Tavares da Silva para a equipa B e a estreia é fantástica, com três golos à França num 3-1 no Jamor. “No primeiro, denunciou a sua serenidade. No segundo, a sua persistência. No terceiro, a sua classe.” Pelos AA, Águas faz-se internacional em 1953, num jogo de triste memória pelos 9-1 da Áustria em Viena, relativo à qualificação para o Mundial-54. O nosso um é da autoria de Águas, com o pé esquerdo, assistido por Travassos. Antes, no estágio, a diversão é o prato do dia, sobretudo com o guarda-redes portista Barrigana, rei das anedotas e a quem lhe cobra os 100 escudos pela aposta ganha do hat-trick ao FC Porto umas semanas antes.
Dois golos a Azevedo do Sporting, três a Barrigana do Porto. O mundo de Águas está bem, recomenda-se e, espante-se, vai ganhar asas para ultrapassar fronteiras. Se Ted Smith é o treinador que aposta em si, é com Otto Glória que será campeão nacional pela primeira vez (num total de cinco) e é com Bela Guttmann que é elevado a capitão da fantástica epopeia internacional na Taça dos Campeões. À partida, ninguém acredita no Benfica. Nem mesmo na véspera da final, com o Barcelona, em Berna. “Quando o Benfica chegou ao campo para o treino de adaptação ao relvado, a rapaziada que por ali cirandava concentrou-se junto ao autocarro. Entretanto, chegou o autocarro do Barcelona e toda aquela gente, com excepção dos portugueses, correu na direcção oposta. Senti naquele momento que nos consideravam os ‘mija na escada’ e a eles os grandes senhores. No dia seguinte, dentro do campo, o público virou-se completamente a nosso favor.”
Nessa tarde-noite de 31 Maio 1961, o Benfica surpreende toda a Europa e derruba o favoritismo do Barcelona por 3-2. É de Águas o 1-1. Detalhe contado pelo próprio. “Na véspera da final, tive um acidente a sonhar, depois de 11 dias em estágio a dormir sozinho. Desabafei com o médico do Benfica, que me disse para falar com ele antes do jogo. Assim fiz. E o dr. Sousa Pinho levou-me ao bar. Mandou-me vir um café e um brandy. Foi o meu doping.” Mal soa o apito final do árbitro, os adeptos invadem o relvado para saudar os campeões. Instala-se uma barafunda de todo o tamanho. De tal modo que Ebbe Schwartz, presidente da UEFA, atira precipitadamente a taça para as mãos do capitão Águas e a organização coloca um disco português em vez do hino nacional. Seja como for, os adeptos portugueses continuam a festejar no relvado com garrafões de vinho, pastéis e pastelinhos, pernas de frango assado. Bem à portuguesa, ao som de “Abril em Portugal”.
Na época seguinte, o Benfica repete a proeza, com outro golo de Águas na final, agora ao Real Madrid (5-3). Na véspera, cai uma chuva insistente em Amesterdão. “Apesar da chuva e da humidade, Guttmann não abdicou do treino, enquanto o Real Madrid cancelou o seu e permitiu que os seus jogadores se passeassem de gabardina nas ruas da cidade, nas compras. Quando o treinador Muñoz soube do nosso treino, perguntou ao jornalista português: ‘Como é possível que o treinador do Benfica ponha os jogadores a treinarem-se com esta temperatura?’ Pois é, Guttmann não brincava em serviço.”
Na ressaca dessa conquista, Bela Guttmann sai do Benfica. Com o chileno Fernando Riera a apostar em Torres, desmorona-se o mundo de Águas, agora suplente. Emigra então para a Áustria, acompanhado pela mulher e os filhos (Rui, Lena). Joga no Austria Viena, onde marca dois golos em sete jogos. Longe dos números arrasadores no Benfica: 379 golos (em 384 jogos) no segundo melhor registo de sempre do clube, só atrás de Eusébio (473), outro fenómeno da África colonial. Como se isso fosse pouco, Águas marca em três finais da Taça de Portugal (Carlos Gomes do Sporting, Barrigana do Porto e Rita do Covilhã) e estabelece-se por cinco vezes como o melhor marcador da 1.ª Divisão, que o ajuda a ser dos poucos jogadores do mundo a terminar a carreira com mais golos (290) que jogos (282).