Apesar dos seus sete anos, ou precisamente por causa deles, precisou de poucos dias para deixar de comunicar por gestos e começar a arranhar um português que acabou por se tornar perfeito. Contou-nos tudo sobre a sua família, os seus amigos e todas as coisas que adorava em Ivankinv, a sua terra natal, na Ucrânia. Ensinou-nos algumas palavras na sua língua (que nunca chegámos a pronunciar muito bem), passeámos e cantámos vezes sem conta a sua música portuguesa favorita, Bamos Lá, Cambada do Herman José, que se converteu na banda sonora daquele verão que nunca haveremos de esquecer.
A partir daí, deixou de nos visitar. Não porque deixou de passar as férias connosco, mas porque passou a ser da nossa família, e a nossa mesa passou também a ser a dela.
Esta semana, quando lhe escrevi para que soubesse que estávamos a pensar nela e que a sua casa portuguesa continuava à sua espera, disse-me que estava há 13 horas a caminho da Polónia.
“É muito difícil, irmão. São tantas pessoas a fugir das suas casas e de tudo o que construiram durante anos…”, relatou com uma clareza que nos apertou o coração. Chega a ser patética a forma como achamos que as nossas lágrimas têm alguma importância. O que pensarão os ucranianos que agora perdem tudo, tudo menos a dignidade, daqueles que, à distância, se queixam da inconveniência de uma guerra que veio abalar o nosso estado de espírito logo depois de uma pandemia?!
Pedi-lhe que me avisasse quando atravessasse a fronteira.
“Não sei quando será. Pais, irmãos e amigos ficaram para trás. Não sei como vão chegar lá. Por enquanto, vamos para a Polónia, onde eles nos darão estatuto de refugiados… e talvez vivamos de alguma forma”.
Disse-lhe que trataríamos do seu bilhete de avião para Portugal, mal conseguisse sair da Ucrânia. Só com a sua resposta é que percebi o egoísmo da minha sugestão.
“Sou muito grata… mas precisamos de formalizar o facto de sermos refugiados, receber algum tipo de assistência e esperar pelo resto dos parentes. Pai, mãe, irmão: todos ficaram para trás”.
Quando este conflito terminar, haverá famílias que nunca mais se reencontrarão.
Legados e memórias que serão para sempre interrompidos. Mas como a minha pequena irmã nos ensinou, mesmo na noite mais escura, haverá sempre quem resista. Haverá sempre esperança. Haverá sempre amor.
“É muito difícil, irmão. São tantas pessoas a fugir das suas casas e de tudo o que construiram durante anos… mas nós vamos lidar!”
Já estás a dar uma abada a esses carafunchosos, Kateryna. Vamos lidar com eles!