Enquanto os resultados das eleições francesas permanecem no segredo das urnas, penso no que tenho pensado recorrentemente nos últimos anos: na degradação das democracias ocidentais e nas suas múltiplas manifestações. Dos exemplos mais intimidadores às perdas que mesmo nós temos vindo a sofrer, e somos um país democrático, mas nem por isso menos conivente com essas perdas. Porque não reagimos quando os sintomas são apenas adversativos como é claramente o nosso caso?
A erosão das democracias tem um número incontável de razões. No entanto, essa mesma erosão tem um número reduzido de identificadores. E porque as democracias não são um bem adquirido, porque somos, de facto, os responsáveis pela sua manutenção, deveríamos ser vigilantes. Porque há limites que devem ser claros e não negociáveis, exigem de nós uma posição igualmente clara e não negociável.
Portugal já não faz parte da lista das «democracias consolidadas ou plenas», é uma «democracia com falhas» – sabemo-lo e não é de hoje. Esta queda de 2020 deveu-se, em parte, aos confinamentos e restrições impostas em situação de pandemia. E também à redução dos debates parlamentares, à falta de transparência nas nomeações, à má classificação do funcionamento do governo, 7.50 em 10, ou 6.11 em 10 na participação política. Esta avaliação não é apenas a de uma revista, a The Economist, referente a 2020. Se consultarmos o International IDEA, instituto do qual Portugal é membro, na avaliação do estado global da democracia portuguesa, podemos perceber as suas principais falhas, desde a abstenção eleitoral à corrupção e à falta de imparcialidade da administração pública, todas no amarelo. Se consultarmos o relatório da Freedoom House, vemo-nos como uma democracia estável, um país livre, 96 pontos em 100 possíveis, e nos eventos chave de 2021, a par do impacto do Covid e da reeleição de Marcelo, encontramos a partilha de dados dos manifestantes com os países contra os quais se manifestavam, levada a cabo pela Câmara Municipal de Lisboa.
Tudo quando reduza a qualidade da nossa democracia merece no mínimo a nossa indignação. Mas preferencialmente deve merecer responsabilização política. Mesmo um governo democraticamente eleito como o nosso, agora com maioria absoluta, uma vez no poder tem tiques autoritários alarmantes. Tornou-se um cliché citar o clássico «quem se mete com o PS, leva», mas não é esta frase uma homenagem em si mesma a Lenine e ao vício de premiar a lealdade em vez do mérito? Não foi isto que fez à exaustão António Costa com Eduardo Cabrita, e faz com os seus indefectíveis? O prémio é pela lealdade e não pela competência. E não é este, noutra dimensão, porém, o comportamento que encontramos nas anocracias e autocracias, da política à economia? Não é isto o que fez Trump na Casa Branca e está a fazer com o Partido Republicano? Não é isto o que faz Putin com os seus políticos e oligarcas de bolso?
Portugal é um país pobre. Dos mais pobres da União Europeia, e em queda contínua. Juntemos a desigualdade. A imobilidade social. A perda de poder de compra. A invisibilidade. A falta de esperança. Este é o pasto dos predadores.
Ainda que não saiba o resultado das eleições francesas, certo é que a França está dividida. E Macron, o mal menor neste momento, já aqui o disse, é também responsável por essa polarização. Tradicionalmente, na Europa, o centro, centro direita, foi o filtro da direita populista de vocação autocrática. Quando aos vícios dessa direita, como a falta de freio liberal, se somam os vícios da esquerda, como a apropriação da coisa pública, e os ataques sistemáticos da esquerda e do woke, cria-se um cocktail explosivo de nacionais tribalismos alimentados a ressentimentos vários onde os extremos de direita e de esquerda se encontram. Marine Le Pen e Mélenchon estão ao serviço da democracia francesa tanto quanto o sintético Trump está ao serviço da democracia americana, ou Catarina Martins e André Ventura estão ao serviço da democracia portuguesa.
Seja como for, e por muito que o futuro das democracias ocidentais pareça declinar entre a guerra na Europa e os Estados Unidos à beira da guerra civil, há solução: reforçar a democracia, reforçar os mecanismos que a garantem.
A autora escreve segundo a antiga ortografia