Posso andar, como é costume, muito distraído com muitas coisas, mas tenho reparado, com surpresa, que os órgãos de comunicação social portugueses não têm dado qualquer reparo a mais uma ferida horrenda ao que os cristãos históricos chamam, com diversas entoações e adequações, de Corpo Místico de Cristo: a Igreja. Não quero ser injusto, mas, inspirando-me em William Thompson, às vezes sinto que a atenção, que muitos desses órgãos conseguem dispensar da busca de ornamentações para si mesmos, é dedicada, por eles, à desatenção dos seus deveres.

Refiro-me singularmente ao relatório de abusos sexuais cometidos pelas diversas denominações evangélicas dos EUA. Compreendo que, efetivamente, diversas folhagens de oceanos nos afastam dessa situação: o geográfico, que une e separa as costas da nação Lusa às/das dos EUA; o histórico, decorrente de, em Portugal, se dar mais atenção à Igreja Católica, talvez devido ao seu, mais ou menos machucado, papel e subsequentes frutos desejados e, por vezes, desprezados (ainda que usufruídos); o narrativo, resultante de não se poder perpetuar uma série de mitos que, com benignidade e humildade, mencionarei mais adiante.

Acontece que nenhum desses oceanos, pese embora cada um deles faça um mapeamento diferente da única realidade existente, é intransponível. Transpondo-os, a visão parcial que sempre nos é dada individualmente é enriquecida, e um panorama mais amplo pode emergir.

A globalização é um facto. O que se está a passar nos EUA afeta-nos, sim; comove-nos, certamente; muda-nos, evidentemente. E eu, como cristão que sou (chamado a uma unidade que testemunhe amorosamente a verdade de quem somos enquanto discípulos do Deus-Amor incarnado), vivo a sentir-me, e a saber-me chamado a uma fraternidade humana já deveras empática. Mas não só: vivo a querer viver uma outra irmandade cristã cristiformemente compassiva: «sede todos unânimes, compassivos, cheios de amor fraterno, misericordiosos e humildes de espírito» (1Pd. 3,8).

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Em consequência do apontado, não posso ter vergonha em admitir que não foram poucas as penosas e amargas lágrimas que, enquanto pessoa de coração aberto que sou, escorreram pela minha face, e pelo meu coração, quando soube acerca daquilo a que Russel Moore denominou de «apocalipse», face a uma «realidade mais malévola e sistémica do que alguma vez imaginara». Quantos cataclismos e quantas revelações de, citando São Paulo também a apresentar-se a chorar, «muitos que caminham como inimigos da Cruz» (Flp. 3,18).

Não é fácil caracterizar quem são os cristãos evangélicos e, por isso, talvez vá incorrer numa posição metonímica. Uma em que, sem outra causa além do meu possível desconhecimento, me conduzirá a tomar a parte como sendo o todo. Aqui ficam, desde já, os meus lamentos se vier a ferir a quem tanto amo, especialmente desde que tive a imensa honra de lecionar, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, para uma encantadora e genuinamente católica pastora evangélica.

Pois bem, se tal caracterização se apresenta difícil, isso deve-se, em meu entender, a não haver uma normatividade clara e suficientemente abrangente acerca de quem é verdadeiramente um cristão evangélico. A não haver uma melodia comum que faça convergir a constatação de que a fé depositada em Deus também modula, e é modulada por uma fé que leva a que se creia em verdades irredutíveis na sua ductilidade.

Seja como for, tenho em mim a convicção, não totalmente desfasada do dito na académia e por amigos evangélicos, que bastará, a nível pessoal individual, afirmar-se três realidades: 1) o ter vivido subjetivamente uma experiência de conversão pessoal a Jesus, através do Espírito Santo; 2) a autoridade suprema da Bíblia; 3) o desejo de testemunhar cooperativamente o Evangelho (Jesus) e o evangelho (a mensagem) do Evangelho.

Já a nível congregacional, é requerido o pagamento de uma dada cota económica a uma associação que reconheça dado movimento como sendo evangélico.

Eis, compreensivelmente, a razão de, dentro do que a definição de “evangélico” pode abarcar, encontrarmos anabatistas, batistas, pentecostais, weslenianos, calvinistas, arminianos, menonistas, presbiteranos, metodistas, laestadianos e outros mais. Ou seja, movimentos teológicos que, em derradeira análise e afora o antes apontado, não estão, por vezes minimamente, em sintonia em questões doutrinais essenciais mais amplas.

Além disto, dentro de cada uma dessas denominações cristãs, há tendências pró-políticas e apolíticas; institucionalistas e dissidentes face ao Estado; teologicamente liberais e fundamentalistas; atreitos ao dinheiro (e aqui temos a não bíblico-cristã “teologia da prosperidade” a assomar) e genuinamente desapegados; multiétnicas e (para mim incompreensivelmente) ainda racistas; afunilados nas suas convicções e abertos ao vedetismo pastoril; etc. «Na casa do Pai há muitas moradas», disse Jesus (Jo. 14,2), mas, às vezes e deixando fluir (quanto estou com conhecidos evangélicos) o meu raramente certeiro sentido de humor, parece-me que, no mundo evangélico, há moradas que mais querem ser outras casas.

Em todo o caso, uma das mais relevantes associações evangélicas de todo o mundo, com influência marcante, embora que diferenciada, por todo este, é a Convenção Batista do Sul (CBdS). Esta é mesmo a maior denominação cristã batista (calvinista), e, embora o sistema congregacionalista dê relativa autonomia às distintas autodenominadas Igrejas a ela ligadas, congrega, mobiliza e orienta milhares de tais Igrejas. E isto, ainda que pelo meio de sucessivas cisões, revoltas, conflitos e – não tenho outro vocábulo para caracterizar, com todo o tato, o que pretendo mencionar – escândalos.

Foi, justamente acerca desta associação, que, com choque e tristeza, me deparei, nas últimas semanas e fruto do contacto com diversos órgãos de comunicação social dos EUA e amigos evangélicos portugueses, com um devastador relatório da Guidepost Solutions. Um relatório dado a conhecer acerca dos abusos sexuais cometidos e encobertos por membros da CBdS. Verdade seja dita: tal vir a público pareceu-me ter ocorrido com grave singeleza, se bem que após grandes resistências internas, que, em certas ocasiões, chegaram ao anatemizar verbal de quem sobre isso desejava falar, sendo que invetivas como «és pior do que satanás» e «vai para casa seu monstro», são das mais benignas que creio poder trazer, com recato, para aqui.

Já se sabia, tal como o colonista deste jornal (o afamado músico e pastor batista Tiago Cavaco) já pôde admitir com a sua habitual modéstia e amor à verdade, que o problema de tais abusos não era restrito à Igreja Católica. É, sim e como costumo afirmar (sem querer diminuir um ponto que seja à seriedade do que se passa naquela), um drama humano. Um que é transversal, dilacerador e definhador, não só de todas as religiões (não sendo, aliás, a cristã aquela que é mais afetada… e, acerca disto, deveremos, um dia, falar séria e responsavelmente), mas, isso sim, de todos os povos e culturas.

No entanto, e apesar disto, o impacto, de tal relatório, na minha consciência de cristão e de docente de teologia católica, desassossegou-me e enfuriou-me tremendamente. Fruto disso, e tal como tenho vindo a fazer, pelo que já é sabido a respeito do que é sabido a respeito da minha amada Igreja Católica, entreguei-me a dias, quer de uma mais desejosa e focada oração, quer, especialmente, de uma mais profunda convicta atenção aos mais necessitados de entre todos aqueles com que me cruzo. Não podia ser de outra forma. Também nisto (e não será que mormente nisto?) é para os cristãos viverem o valiosíssimo «ut unum sint» (Jo. 17,21)

Foram, e ainda estão a ser, momentos de amor cruciforme e de lamento pungente pelas, agora conhecidas por tal documento, feridas hétero-infligidas pelos perpetradores a tantas vítimas vulneráveis e, no mesmíssimo movimento, autoinfligidas pelos mesmos perpetradores, os quais, destarte, se revelaram pessoas sem coração; sem aquele amor custoso pelo próximo que é, quer queiramos ou não, o único autêntico.

Na presença destes excruciantes factos, e por mais que a minha próxima admissão possa vir a chocar e a provocar repúdio e náusea da minha pessoa, eu, como cristão, não posso senão compadecer-me por todas as pessoas assim sofridas e feridas. E retenha-se que, mesmo sabendo que na meta do existir só haverá amor e alegria mais fortes do que tudo, isto não será algo que poderei viver num instante azul fugidio, antes numa ocre perenidade atenciosa, pois, como disse Léon Bloy no seu Diário, «o sofrimento até poderá passar, mas o ter sofrido, nunca».

Foram redigidas cerca de 200 páginas, avançadas com um advertido intuito pró-ativo, com o nome de pessoas ligadas à CBdS que estiveram envolvidas em tais comportamentos hediondos que “rasgam o Céu”. A 26 de maio do corrente ano, um editorial do The Economist, perante este horrível escândalo e num grau de apuro e justiça que não consigo aferir, não tem embaraço algum em afirmar: «os evangélicos parecem ainda menos capazes de se autocorrigir do que a Igreja Católica».

Muitas pessoas presentes nessas páginas são totalmente desconhecidas para mim, mas algumas delas, pela sua fama pessoal e posterior infâmia comportamental, são bem famosas enquanto evangélicos que eram e/ou são. Entre estas, e outras bem conhecidas de situações análogas, posso, recorrendo a auxiliares de memória, referir, a mero título de exemplo condoído, algumas: Frank Houston; Ravi Zacharias (em cujos livros já coloquei, com agrado e proveito, muita da minha consideração); Paul Pressler; Bill Gothard; C. J. Mahaney (uma das pessoas que mais enriqueceu com o seu tele-evangelismo, apesar de não saber quase nenhuma teologia); e, para não irmos mais longe no que Jonathan Poletti se atreveu a denominar de «conspiração criminosa», Johnny Hunt (antigo presidente da CBdS… quase o “Papa”, então, desse movimento).

Repare-se que, ao longo de 200 páginas, cobrindo (apenas) cerca de 15 anos, é apontado um número colossal de pessoas que praticaram tais crimes judiciais e pecados religiosos. Mesmo sabendo que se tratará de um número menor do que o executado, por exemplo, nas famílias e nas escolas (só até maio deste ano, e nos mesmos EUA, foram presos cerca de 130 trabalhadores escolares por abusos sexuais, 90 deles tendo-os cometido com menores), trata-se de um número avassalador e que receio, com temor e tremor, que apenas raspe a superfície de um leque de ocorrências bem mais amplo.

Um número que, nas palavras de Ed Litton (presidente da CBdS), o faz «orar para que os seus membros se preparem, já hoje, para tomar ações deliberadas que enfrentem as falhas e tracem um novo rumo», até porque, parafraseando o já citado Russel Moore, tudo o que foi feito, foi feito e encoberto apelando-se aos pontos 2) e 3) que indiquei como fazendo parte do mínimo pessoal para se ser um crente evangélico. Passo, presentemente e com um extremo pudor comovido, a citá-lo: «quantas crianças foram violadas, quantas pessoas foram agredidas, quantos gritos foram silenciados, enquanto nos vangloriávamos de que ninguém poderia trazer o mundo para Jesus como nós?».

Parecerá porventura descabido, neste contexto, referir o que este relatório veio mostrar acerca do que de mitológico há em tantas asseverações acerca dos abusos sexuais na Igreja Católica. Contudo, sei que os meus irmãos evangélicos desejam, ardentemente e tanto como eu, que a verdade seja desvendada e dada a conhecer. Aquilo que levou aos abusos sexuais na Igreja Católica não foi: o celibato, a formação sacerdotal em Seminários, o acesso restrito ao sacramento da ordem a varões, nem, ao contrário do que disse o apologista calvinista James White, a doutrina de que os sacramentos são, do lado dos mesmos e graças a Deus, fecundos para quem os recebe independentemente do carácter de quem os administra.

Na realidade, tais abusos, que envergonham o espírito e laceram a alma, dimanam de algo muito mais profundo; de algo muito mais encravado numa natureza humana também, mas felizmente não só, proclive a (querer) exercer um poder despótico e humilhante sobre os demais. E isto, mediante os sujeitos humanos, que a isso se entregam, deixarem que os seus instintos (mormente sexuais, mas não só) mais básicos e (ainda) não-humanizados se tornem prevalentes em situações possivelmente numerosas.

Situações que, baseadas ultimamente no egoísmo (que a nossa sociedade estima ser saudável) se incrementaram e densificaram, com efeitos diversos, com o naturalismo, o individualismo, o tecnicismo, o secularismo, o relativismo, o progressismo e tantos outros -ismos que rasgaram, ainda mais, as faculdades humanas e o seu suporte natural. Situações que, com o tempo e se não forem travadas, podem moldar toda a sua índole, a ponto de, distorcendo a Deus-Amor até fazerem d’Ele uma caricatura, julgarem Aquele que, fazendo justiça, nunca poupa o Seu perdão.

Já os “suspeitos” e “citados” do costume (como Nietzsche, Freud, Arendt, Zimbardo e Kaplan) e outros, antes e depois e com mais atino (Bento XVI não pode deixar de ser aqui referenciado, bem como o seu sucessor), advertiram para isto, cada um a seu modo e com a perspicuidade própria do temperamento de cada um. Outros têm seguido na sua esteira, e, igualmente devido a eles, não deixo de sentir, mesmo que no meio do luto reabilitador pelo amor que ainda estou a viver, um firme alento. Um ânimo sereno e esperançoso que decorre de tudo o que a Igreja Católica está a fazer (e, agora, a CBdS se dispõe a encetar) de modo a que todo o cristão seja o sorriso da bondade de Deus-Amor para toda e qualquer pessoa, a quem está endogenamente chamado a amar leal e apaixonadamente.

Por outras palavras: para que cada cristão, dando crédito e dignidade a rigorosamente toda a pessoa, não a veja como uma relíquia murcha, antes a eleve, na medida do para si praticável, à felicidade libertadora, decorrente da mesma vir a lograr reconhecer que o seu mais íntimo é o próprio e irrefragável Paraíso de Deus. Que a mesma, seja ela quem for, nunca está, nem estará, fora do amor do Deus que só é Amor. Aquém da gratuidade destes atos, o humano humanizado não se revela nem desponta, e o Deus-Amor permanece crucificado como a primeira e maior vítima do “poderia ter sido”.