A Lei de Murphy aplica-se como uma luva aos últimos dez anos. Tudo o que pode correr mal, definitivamente corre. Depois de uma pandemia, a guerra na Europa e as respectivas consequências económicas. Felizmente, os livros não deixam de sair e continuamos a ter a sorte de ler coisas óptimas. Como é meu hábito na altura do Natal no Observador, faço uma lista das coisas que mais gostei de ler este ano. O único critério é, como sempre, o prazer.

Leila Slimani: O País dos Outros e Vejam como Dançamos. Estes dois romances façam parte de uma trilogia que a escritora marroquina está neste momento a terminar. Apesar de, em certos momentos, parecerem um ersatz dos livros Napolitanos de Ferrante, não só pela utilização de personagens femininas fortes para guiar a narrativa mas também pela multiplicação de volumes para contar a história das mesmas personagens ao longo de várias gerações, Slimani está em grande forma. Os livros rodam em torno de Matilde, uma alsaciana que se apaixonou por um soldado de origem marroquina que combateu ao lado dos franceses na Segunda Guerra Mundial. Finda a guerra, Matilde muda-se para Marrocos enquanto francesa, numa sociedade em ebulição com a luta colonial.

Philippe Sands: East, West StreetApesar de ter sido um sucesso há uns anos, este livro apenas apareceu no meu radar este ano, devido, naturalmente, aos acontecimentos da Ucrânia, pela mão de um amigo querido. Philippe Sands é um académico do University College London que faz uma narrativa com uma cadência impressionante e com uma erudição imensa sobre as origens do pós-Guerra. O livro é um longo ensaio sobre a história de dois intelectuais que criaram os conceitos de ‘crimes contra a humanidade’ e ‘genocídio’. Apesar de nunca se terem conhecido nem cruzado pessoalmente, e viverem em lados opostos do Atlântico durante a Guerra, Hersch Lauterpacht e Raphael Lemkin percepcionaram os crimes Nazis de forma semelhante e altamente inovadora para a época, tornando-se, de resto, difícil encaixá-los com facilidade na narrativa do Direito da época. A premissa do livro de Sands é fascinante: Lauterpacht e Lemkin nasceram ambos Judeus no mesmo bairro na cidade de Lviv, que hoje todos conhecemos pelos tristes acontecimentos da invasão Russa, e foram ambos alunos dos mesmos professores de Direito. A sua experiência de viver como Judeus na Galicia no período entre Guerras preparou-os para ajudarem o mundo a pensar o impossível.

Almudena Grandes: A Mãe de Frankstein. Com muita pena minha, Almudena Grandes tem apenas dois livros publicados em Portugal. Era uma autora de mão cheia, que, infelizmente, morreu nova em 2021. A Mãe de Frankstein é mais um livro da série sobre “Os Episódios de uma Guerra Interminável”, onde a autora faz, de forma genial, um grande fresco sobre a sociedade e políticas Espanholas a partir da Guerra Civil. A acção deste livro tem lugar num hospital psiquiátrico onde Aurora Rodríguez, uma senhora da alta sociedade Espanhola de inteligência fulgurante, vive desde que enlouqueceu. Tratada pelo médico Germán Velázquez, psiquiatra formado na Suíça que tenta implantar numa Espanha reaccionária os métodos mais avançados para tratar a esquizofrenia e por Maria, a filha do jardineiro da clínica.

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AnnieErnaux: Getting Lost. No dia em que Ernaux ganhou o Nobel tive uma conversa animada com Bruno Vieira Amaral na Rádio Observador. Mantenho tudo o que disse. Acho Ernaux uma escritora menor. Mesmo para os padrões da autoficção tão na moda nos últimos anos, Ernaux leva o solipsismo a um patamar inacreditável. Acima de tudo, a escritora nunca consegue utilizar a sua experiência pessoal para traçar um quadro maior da sua geração, que, de resto, teve um papel fundamental na França do pós-Guerra. De qualquer modo, a leitura é agradável e, desde que feita em doses homeopáticas, não faz mal a ninguém. Este Getting Lost, ainda sem tradução em português, é, talvez, do mais interessante que Ernaux escreveu. Escrito em forma de diário, a autora narra o caso tórrido e profundamente sexual que teve com um attaché da Embaixada Soviética em Paris que, de um momento para o outro, com o colapso da União Soviética, desaparece sem deixar rasco. O livro vale ainda pela descrição crua sobre o amor entre uma mulher de meia idade e um jovem, algo relativamente raro neste tipo de literatura, tipicamente dominada pela perspectiva masculina.

AnnaBadkhen: Bright Unbearable Reality. Talvez a maior e melhor surpresa do ano. O livro de ensaios da escritora Americana de origem Russa. Antes de mais, falemos da forma. Para quem leu a obra-prima de Nabokov – Pnin, o derradeiro campus novel – em Inglês, consegue ouvir-se no subtexto de Badkhen a sintaxe Russa na escrita de um inglês absolutamente perfeito e límpido. O ensaio de abertura, passado no Corno de África no início da pandemia, é um portento de imaginação e de imagética. Se lerem apenas um este ano, que seja este.

Feliz Natal!