A percepção da história do direito natural por Leo Strauss, muitos anos antes da publicação da sua famosa obra Direito Natural e História (1950), coincide no tempo com a sua percepção e experiência da grande crise europeia do liberalismo. Este facto, aparentemente acidental, não é de somenos. Nos últimos anos da República de Weimar, enquanto Strauss arrumava as malas para sair da Alemanha de Hitler e se preparava para estudar Thomas Hobbes no Reino Unido, o liberalismo agonizava de uma maneira vil. Os ideais das Luzes tinham sido enterrados. Por isso, de uma certa maneira, se nos tempos que correm Direito e Natural e História pode ser uma leitura atractiva para um cidadão culto, é porque a acusação que então Strauss fez ao liberalismo pode muito bem ser a acusação que nós, hoje, lhe podemos ainda fazer. A saber: que o ataque ao liberalismo exige que o liberalismo justifique, de maneira radical, a real validade das suas ideias junto dos seus detractores e inimigos. Mas o liberalismo, imbuído quase sempre de um infantil complexo moral de superioridade, lida muito mal com esta reivindicação. Precisamente na época em que Leo Strauss começou a estudar o direito natural moderno, o ataque maciço ao liberalismo europeu obrigou o liberalismo a defender-se e a justificar-se como nunca antes sucedera na Idade Moderna. Definitivamente, ontem como hoje, o liberalismo não estava preparado para o que lhe iria acontecer.

Deve dizer-se que Leo Strauss não concebeu o seu livro Direito Natural e História como uma reflexão que ele sentisse ter encerrado ou despachado, mas como uma preparação para uma discussão filosófica aprofundada sobre a política e a justiça. Por isso, Strauss não discute o direito natural numa esfera apenas jurídica, antes o concebe como um dos conceitos mais próprios e exigentes da filosofia política. E Strauss estabelece diferenças entre o justo natural ou filosófico e o justo político, entre uma vida filosófica e a vida não-filosófica. O direito natural antigo é a pergunta pelo que é justo por natureza. Ele procura responder à questão de qual o melhor regime por natureza. Mas a distinção moderna entre direito e lei pressupõe uma revolta contra a lei. E foi precisamente Thomas Hobbes quem, no entender de Strauss, inverteu completamente a relação antiga, grega e bíblica, entre lei e direito.

Thomas Hobbes é o pensador da segurança do corpo, da propriedade privada, da moral do trabalho e da parcimónia. Na moral liberal de Hobbes, o aristocrata, defensor das virtudes públicas, é substituído pelo burguês, cioso das suas razões privadas. Mas eis que em 1952 a opinião de Strauss a respeito da originalidade comparada de Hobbes e de Maquiavel e do contributo de um e de outro para as fundações da filosofia política moderna muda substancialmente: «Em 1936 eu via Hobbes como o originador da filosofia política moderna. Isto era um erro: não é Hobbes, mas Maquiavel, que merece esta honra». O que foi que entretanto aconteceu que obrigou Strauss a corrigir o tiro de partida?

É claro que o antepassado de Hobbes no direito natural moderno cristão só poderia ser Maquiavel. Foi com a astúcia e o veneno da sua «cólera antiteológica» que Maquiavel desencaminhou os filósofos das suas fábulas metafísicas e os reconduziu à «verdade efectiva» da política. Foi com Maquiavel que os homens passaram a não reconhecer outras leis senão aquelas de que eles próprios são os exclusivos autores. Deus sive fortuna. A acção humana funda-se nas paixões e nos interesses individuais correctamente entendidos. Segundo Strauss, da cólera antiteológica do projecto moderno nasce uma ira política anti-utópica, precisamente aquela encarnada no pensamento, dito “realista”, de Maquiavel. Strauss lê Maquiavel como um «profeta desarmado» que combate o cristianismo exactamente com as mesmas armas de que o cristianismo se serviu na sua luta primitiva contra o paganismo, a saber, com a propaganda e o proselitismo. Por isso, o direito natural moderno a que Maquiavel forneceu o quadro inaugural desemboca num igualitarismo.

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Trata-se agora para Strauss de saber até que ponto Maquiavel, rejeitando a prudência e a moderação dos antigos, que ele dizia admirar, inaugura, com o seu preconceito democrático a favor da multidão, o Iluminismo. Para Strauss, a revolução de Maquiavel abre o caminho ao Iluminismo e a todo o projecto moderno. Mas o grande propósito político do Iluminismo é abolir o «Reino das Trevas» medieval. As Luzes radicais acreditam, de maneira falsa, segundo Strauss, que a educação e o esclarecimento universal dos povos é a solução definitiva para os dilemas políticos do homem. Ao que Strauss objecta: «Devemos considerar se o Iluminismo (Enlightenment) merece o seu nome, ou se o seu verdadeiro nome não será antes o de Obscurecimento (Obfuscation)». Na opinião de Strauss a modernidade substituiu a filosofia pela propaganda, que é a disseminação pública de doutrinas (igualdade natural dos homens, domínio do homem sobre natureza, etc.) que não são nem benéficas nem possíveis. Numa acutilante formulação do carácter ambíguo e auto-contraditório do Iluminismo, Allan Bloom, discípulo de Strauss, acrescenta o seguinte às palavras do mestre: «O momento do êxito do Iluminismo parece ter sido também o começo da sua decadência. O obscurecimento da sua intenção como resultado da sua democratização é sintomático das dificuldades internas do seu projecto».

No juízo de Strauss, a necessidade de se libertarem do utopismo dos antigos, por um lado, e das religiões reveladas, por outro, leva os liberais modernos a um entendimento do indivíduo assente numa concepção realista da baixeza do homem. Na modernidade, inaugurada por Maquiavel e prolongada por Thomas Hobbes e John Locke, o cuidado de conservação do corpo e o amor de si, a ambição e a sede de glória mundana servem o programa de uma concepção egoísta do homem, não sendo o direito de propriedade mais do que a extensão do direito natural de cada indivíduo à sua própria conservação. O direito natural deve, por isso, ser deduzido desse desejo natural de conservação. O natural é sempre individual. E Strauss compraz-se em sublinhar o modo como no projecto Iluminista o igualitarismo moderno e a visão bíblica cristã, segundo a qual os homens são todos iguais perante Deus, são aliados e não inimigos. Por um lado, os indivíduos agregados sob este universalismo formam uma humanidade moral. Por outro, a sociedade que lhe dá forma deve ser igualitária de modo a poder deixar ao cuidado de cada indivíduo a realização da sua própria humanidade. E é neste sentido que se pode dizer que o direito natural moderno é um jus publicum universale sive naturale. Nele, todo o indivíduo tem um valor infinito do qual resulta uma liberdade subjectiva infinita.

Esta ideia igualitária própria do liberalismo moderno, pensa Strauss, foi introduzida no mundo de maneira radical pelo cristianismo. As obras políticas de Rousseau e de Kant dão-nos a medida do real significado da secularização cristã. Elas são os emblemas epocais da intenção antiteológica das Luzes na sua expressão simultaneamente radical e normativa. Mas a secularização não é para Strauss mais do que o prolongamento do cristianismo sob a sua forma moderna. Strauss considera que o direito natural antigo foi profundamente modificado na sua expressão cristã moderna. Virtudes como o cuidado pela igualdade, o amor fraternal e a compaixão são, na sua essência, virtudes cristãs secularizadas pelo liberalismo moderno. Esse liberalismo moderno, objectivado no pensamento político de Hobbes, e frequentemente confundido com o complexo semântico presente no conceito de «secularização», é, segundo Strauss, a continuação do cristianismo por outros meios. Strauss identifica as virtudes do liberalismo com as virtudes cristãs. Mas a tradição religiosa, a dos antigos gregos e a bíblica, foi impiedosamente atacada nas Luzes radicais sob o slogan «Reino das Trevas», uma expressão cunhada, não por acaso, por Hobbes. A crítica política da religião surge como instrumento por excelência da emancipação filosófica e política. Numa palavra, o ateísmo vence. Mas a destruição da ilusão religiosa levada a cabo nas Luzes radicais pôs um fim ao liberalismo, que no seu desenvolvimento histórico dispensou a protecção política que a tradição religiosa lhe poderia oferecer. A vitória final do liberalismo sobre o «Reino das Trevas» medieval pôs a nu a fraqueza das virtudes cristãs, durante muito tempo confundidas com o próprio fundamento do liberalismo. Strauss não aceita o democratismo filosófico que o pensamento político de Maquiavel inspirou às Luzes radicais. E sobretudo o seu espírito aristocrático não lhe permite aceitar os valores centrais do liberalismo cristão, no qual cada homem possui um valor moral integral, independentemente do seu grau de educação ou sabedoria.

Voltemos ao tópico que constitui o nosso mote para lermos hoje Direito Natural e História. Como responde o liberalismo às crises do liberalismo? De que modo o liberalismo resiste e de que modo ele responde hoje aos intensos ataques sob os quais novamente se encontra? Em modo de conclusão, podemos recordar que enquanto Strauss assistia, impotente, ao afundamento e à catástrofe do liberalismo europeu, um conjunto de liberais de variada proveniência se encontraram em Paris para um colóquio internacional, determinado pela urgência da crise liberal. Este encontro, que ficou conhecido como «Colóquio Walter Lippmann», estendeu-se durante quatro dias (26-29 Agosto de 1938), cada um deles consagrado a uma grande questão que deveria orientar os trabalhos do respectivo dia: i) «Que razões para o declínio e para o regresso do liberalismo?»; ii) «O declínio do liberalismo deve-se a causas endógenas?»; iii) «O liberalismo é capaz de desempenhar as suas tarefas sociais?»; iv) «Se o declínio do liberalismo não é inevitável, quais são as suas verdadeiras causas (causas exógenas)?». Alguns subtópicos, não menos importantes, seriam também objecto de interessantes discussões nesse ano de 1938 em Paris: i) «O liberalismo e a economia de guerra»; ii) «O liberalismo e o nacionalismo económico»; iii) «O liberalismo e a questão social»; iv) «Causas psicológicas e sociológicas, causas políticas e ideológicas do declínio do liberalismo»; v) «A agenda do liberalismo»; vi) «Os problemas teóricos e práticos do regresso do liberalismo».

Uma vez o colóquio encerrado, os participantes concordaram em criar um «Centro Internacional de Estudos para a Renovação do Liberalismo», uma espécie de think thank capaz de dar conta dos esforços científicos do grupo com vista à renovação e revitalização do liberalismo no Ocidente.

E nós? Não estaremos nós, hoje, numa situação histórica de algum modo semelhante? E não serão estas perguntas de 1938 ainda hoje as nossas perguntas? Quo vadis, liberalismo?