O Observador conversou recentemente sobre o conflito Israel-Hamas com o professor Y. A partir de um lugar de fala na academia, que se pretende factual, objectivo e razoavelmente equilibrado, procurou-se nesta conversa analisar a actualidade noticiosa sobre a guerra Israel-Hamas com alguma distância e rigor intelectual, tentando contextualizar historicamente os problemas e recusando o autêntico torneio mediático de ódio em que neste momento se transformou o conflito Israel vs Hamas e Hezbollah.

Pergunta: – Do ponto de vista estrito da Comunicação Política, uma das áreas de estudo do professor, que avaliação faz das declarações do Parlamento, do Governo e do Presidente da República sobre o conflito entre Israel e Hamas e Hezbollah?

Resposta: – Bom, em primeiro lugar, começaria por observar que todas as declarações que refere têm intensificado, até um limiar de emocionalidade por vezes a roçar o patológico, o fenómeno da polarização política. A natureza desencontrada e descoordenada destas declarações mostra bem o lado tumultuoso e dramático do que está em disputa. Por outro lado, a sua precariedade e volubilidade reflectem o desenrolar contingente da própria guerra. Mas a polarização política que resulta de uma guerra entre judeus e árabes, embora lá longe no Médio Oriente, conhece em Portugal, por razões históricas únicas, uma forma de manifestação muito peculiar. E é sob este prisma que eu olho para esta polarização. Não se a pode abordar como se se tratasse de um Benfica-Sporting no qual o VAR dispõe da última palavra.

– Independentemente de um político português medianamente informado não ser hoje sequer capaz de distinguir um judeu sefardita de um judeu asquenaze, a nossa posição de observadores do que se passa actualmente em Israel e na Faixa de Gaza está ainda profundamente marcada pelo modo como, em Portugal, a maioria cristã tratou a minoria judaica durante séculos, da Idade Média até ao século XIX. Qual foi a imagem que a Inquisição forjou do judeu ou do cristão-novo? O judeu é avaro, mesquinho, pérfido, fingido, traiçoeiro, herético, ganancioso, profanador de hóstias, envenenador de poços, tem um mau cheiro peculiar que o caracteriza, é sacrificador de crianças gentias e autor de mortes rituais de não-judeus, é arrematador de rendas, prestamista e usurário, e nalguns casos o judeu do sexo masculino menstrua e tudo… Pois bem, esta imagem arcaica e subconsciente de um judeu mitificado veio de repente ao de cima (“Coming up for Air”) nas chamadas “declarações consensualizadas” dos partidos políticos portugueses. Ela veio ao de cima, como dizia, com uma força extraordinária, numa espécie de descarga e esvaziamento de um material cultural recalcado. Para quem a souber ler, ela está inteirinha e convenientemente disfarçada ou velada na hermenêutica hipócrita e moralizante que corre na chamada bolha mediática, com todo o tipo de «mas», pequenos, médios ou grandes, que lhe conhecemos (“Sim, Israel foi alvo de uma matança no seu próprio território, mas…”; “Sim, Israel tem direito a defender-se, mas… Israel está a violar os direitos humanos com o cerco que está a fazer à Faixa de Gaza”; e assim por diante).

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– No meu entender, a defesa subliminar da causa palestina feita pelo primeiro-ministro António Costa no Parlamento pode ler-se como um oportuno acto de política interna feito a partir de um problema externo. A condição de crescente pobreza e precarização da vida dos portugueses sai bem no retrato quando comparada com a pobreza e a indigência dos palestinianos. António Costa é um político astuto e sabe muito bem que este é o sentir do povo! O povo torce naturalmente pelos pobres e humilhados lá fora e identifica-se com ele, António Costa, cá dentro. Apesar da aparente simetria e neutralidade do seu julgamento, tal qual Herodes acima das partes, condenando tanto o Hamas como o Estado de Israel, a solidarização subliminar de Costa com a causa dos palestinianos lisonjeia o povo desgraçado cá dentro, que assim esquece ou relativiza a degradação das suas condições de vida e o seu acelerado empobrecimento, um povo pelo qual, aliás, o primeiro-ministro não sente necessidade de mostrar uma excessiva misericórdia.

– Concluo a resposta à sua pergunta evocando o escândalo da lei que permitiu aos judeus sefarditas obter a nacionalidade portuguesa, cinco séculos após a sua expulsão de Portugal. No meu entender, esta lei, malparida e pior fiscalizada, foi o espoletador remoto deste profundo recalcado católico contra os judeus e, consequentemente, contra Israel, observável hoje nas “declarações consensualizadas” (sic!) dos escribas de serviço dos partidos. Ela deu razão aos preconceitos e aos mitos católicos sobre os judeus, reforçando-os. O Partido Socialista dividiu-se então em duas facções. Aliás, a este respeito lembro-me perfeitamente do que na altura o médico Joshua Ruah, ex-líder da Comunidade Israelita de Lisboa, disse do “português mais rico do mundo”, Roman Abramovich, quando se discutia a atribuição da nacionalidade a judeus sefarditas: muito graciosamente, chamou-lhe… «jogador de futebol russo». Como?! Uma avozinha na nação portuguesa de Hamburgo?!

Pergunta: – Na discussão que se trava nos media sobre esta guerra, utilizam-se muito as expressões “anti-semitismo” e “anti-sionismo” para designar a aversão ou o ódio aos judeus ou a Israel. O que eu lhe perguntaria é o seguinte: estas expressões têm sido usadas exactamente com que significados ao certo? E, já agora, diga-nos: como é que caracterizaria o “anti-semitismo” ou o “anti-sionismo” dos paises árabes à volta de Israel?

Resposta: – Anti-semitismo é um termo relativamente recente. Foi cunhado por um jornalista alemão chamado Wilhelm Marr, em 1879. O conceito designa uma fobia racial aos judeus muito diferente do ódio religioso do anti-judaísmo medieval, seja este cristão ou muçulmano. “Anti-semitismo”, na boca de um muçulmano, é pura e simplesmente uma contradição nos termos, pela simples razão de que o termo “semita” designa uma família de línguas aparentadas, como o hebraico e o árabe, e não uma raça ou uma característica étnica. A vida dos judeus subjugados no Islão foi muito diferente da vida dos judeus nos países cristãos europeus. Há que sublinhar que até hoje, apesar de inúmeros massacres entretanto ocorridos, não houve, graças a Deus, nenhum genocídio de judeus no Islão. No Império Otomano as autoridades não toleravam matanças de judeus. No Islão, os judeus eram cidadãos de segunda classe (dhimmi) obrigados a pagar um imposto especial (a Jazya) e tinham um estatuto legal chamado dhimma. O “anti-semitismo” muçulmano só aparece no final do século XIX e através da influência das comunidades árabes cristãs presentes nalguns países do Médio Oriente. Foi só no final do século XIX, e sobretudo no início do século XX, que a literatura anti-semita europeia foi traduzida massivamente para o árabe. O Talmude dos Judeus, de August Rohling, Os Protocolos dos Sábios de Sião, o Mein Kampf de Hitler, etc. Em Portugal tivemos um senhor, Mário de Saa, que publicou, em 1924, um livro chamado A invasão dos judeus, cujo subtítulo diz praticamente tudo: «invasão do sangue – assalto à riqueza – assalto ao estado – assalto à religião – assalto à vida mental». Eram os tempos em que o grande Mufti de Jerusalém encontrava refúgio na Alemanha nazi. Mas o “anti-semitismo” dos árabes foi modificando o seu alvo ao longo dos tempos e nas últimas décadas atingiu níveis delirantes de conspiracionismo, como aquele que pretende que foram os judeus que atacaram as torres gémeas em 2001, apesar de o defunto Ben Laden o ter reivindicado muitas vezes como bravata sua. Seja como for, a jihad contra os infiéis não pára e as televisões e as escolas árabes estão repletas de propaganda contra Israel. Umas vezes o “anti-semitismo” é reduzido a anti-sionismo, vontade de destruir o Estado de Israel, outras vezes o anti-sionismo é reduzido a “anti-semitismo”, vontade de destruir a religião judaica e os seus crentes. Mas os termos são estrategicamente reversíveis. Em todo o caso, não é fácil definir e caracterizar o “anti-semitismo” muçulmano segundo critérios ocidentais. Este não é matricialmente racista, porque sendo o Islão uma religião que se alarga a vários continentes e a numerosos países, inclui brancos e não brancos.

Pergunta: Na avaliação que faz do que se passa no terreno no actual cenário de guerra, quais poderão ou quais poderiam ser, no seu entender, as etapas seguintes deste conflito?

Resposta: Apresento-lhe dois cenários: aquele que eu gostaria que acontecesse, e aquele que eu considero mais verosímil. Mas antes disso, deixe-me dizer-lhe algumas palavras sobre a paz na tradição judaica. A paz, na tradição judaica mais funda, é o mais estimável dos bens. A paz é a maior das bênçãos a que um homem justo deve aspirar. A própria Torah, aliás, não existe senão por amor da paz. Nesta tradição, os que amam a paz e lutam por ela são chamados discípulos de Aarão. Por isso, fazer a paz é como fazer caridade: traz benefícios a este mundo e mesmo ao mundo por vir. E, last but not the least, somente pela paz a própria Jerusalém será um dia reconstruída! Ora, o messianismo fundamentalista judaico, a quem Benjamin Netanyahu presta contas nesta guerra, não é pela paz.

Vamos agora aos dois cenários que referia há pouco. O primeiro cenário obriga-me a recontar uma célebre história, ainda que de forma demasiado rápida e esquemática: no ano 70 da nossa era cristã caiu o 2º estado dos antigos hebreus. Nesse ano, Vespasiano, um general romano, anexou a Judeia ao Império Romano. Mas houve uma cidade, chamada Jotapata, que tendo sobrevivido ao assédio romano para lá daquela data, recusou render-se aos ocupantes romanos. Jotapata foi então submetida a um cerco terrível, até que 40 generais judeus que se escondiam numas cisternas e que se recusavam a subir à superfície e entregar-se aos soldados romanos, esboçaram um plano de suicídio colectivo. Não sairiam dali vivos e humilhados pelos romanos vencedores. Deste modo, para que cada um dos generais não se matasse pela sua própria mão, estabeleceu-se um sorteio, até que sobraram apenas o comandante Flávio Josefo e um outro general, seu companheiro. Josefo convenceu o companheiro a entregarem-se ambos aos romanos, em vez de se suicidarem. Então Josefo e o seu camarada de armas saíram finalmente da cisterna e Josefo falou cara-a-cara com Vespasiano, que lhe perguntou porque saíra da toca com a confiança de que ele, Vespasiano, lhe pouparia a vida. Josefo disse-lhe que tinha sonhado que ele, Vespasiano, haveria de tornar-se Imperador em Roma, e que o mesmo haveria de acontecer com Tito, filho de Vespasiano. Moral da história: Josefo foi levado como escravo para Roma e Vespasiano tornou-se efectivamente Imperador. Josefo foi salvo e adquiriu entretanto entre os romanos um estatuto privilegiado.

Era isto que eu gostaria que acontecesse hoje na Palestina: que um improvável herói de guerra palestianiano adquirisse um estatuto tal entre os israelitas, que este pudesse ser comparado ao estatuto que o judeu Josefo granjeou outrora entre os romanos; e que os dois povos começassem a cooperar e a frutificar um com outro, em vez de se guerrearem eternamente um ao outro. Na minha opinião, a dupla solução de uma terra para um povo sem estado desde 70 A.C. (judeus), e de um estado para um povo sem terra (palestinianos), embora desejável, não parece, infelizmente, próxima de se realizar. De modo que o que o que eu penso que vai realmente acontecer é que Gaza será cercada tal como outrora foi cercada Jotapata. Isto é, Gaza vai ser cercada à maneira romana. Só que desta vez, receio que o último terrorista a sair de uma qualquer cisterna ou toca nos labirínticos 500 km de túneis de Gaza, sairá mais à maneira de Sadam Hussein do que à maneira de Flávio Josefo, general dos judeus. Todos nos lembramos da imagem que mostra Sadam Hussein a sair da sua toca no Iraque. As analogias entre o 11 de Setembro americano e o 7 de Outubro israelita não ficam por aqui. Eu sim.

Pergunta: Sabemos que o professor sente uma admiração especial pela figura de Yitzhak Rabin, um primeiro-ministro de Israel que foi assassinado em 1995 por um judeu extremista num momento chave de negociação do Estado de Israel com a liderança palestina. Quer dizer-nos alguma coisa sobre este assassinato?

Resposta: Yitzhak Rabin foi um estadista visionário. Um homem bom que procurou negociar a paz com as autoridades palestinianas, aceitando trocar terras por paz e prosperidade recíprocas. Foi assassinado por um judeu radical, porta-voz de uma concepção sacerdotal do Estado, que ele, Rabin, não poderia de modo nenhum aceitar. Ontem, como hoje, a entrega e devolução de territórios conquistados aos palestinianos é um acto sacrílego para todos os fundamentalistas messiânicos que ocupam a Cisjordânia. Finalmente, resta-me agora recordar as declarações de Ygal Amin, o assassino de Yitzhak Rabin, junto dos seus inquiridores no quartel-general da polícia: «Quem coloca em perigo o povo judeu morrerá. Rabin tinha de morrer e eu fiz esse trabalho pelo povo de Israel.» Quando a sua detenção foi prorrogada, disse ao juiz: «Segundo a lei rabínica, é preciso matar o judeu que entrega o seu povo e o seu país ao inimigo.» O juiz: «Isso está escrito nalgum lugar da Torah?» Ygal Amir: «Estudei o Talmude durante toda a minha vida, tenho os dados todos.» O juiz, surpreendido: «Aboliram os dez mandamentos? Você sabe que há um mandamento que diz não matarás?» Amir: «Não, os dez mandamentos não foram abolidos, mas há um mandamento mais importante que esse que diz ‘não matarás’, que é o de salvar uma alma; foi o que eu fiz, salvei almas.» E Ygal Amir acrescenta: «Agi e Deus está comigo». Num outro interrogatório feito posteriormente, Ygal Amir afirmou também: «Se há uma obrigação religiosa, não existe qualquer problema moral. Se eu tivesse estado com os conquistadores do Eretz Israel, nos tempos bíblicos, teria matado bebés e crianças, como está escrito no Livro de Josué. Tê-lo-ia feito sem problemas morais, embora, aparentemente, haja aqui um problema de moral. Ora, como se trata de uma obrigação religiosa, não tenho qualquer problema moral.» O inquiridor: «Se se trata de uma obrigação religiosa, então é proibido colocar interrogações…É isso?»