A seca em Portugal não é uma novidade. Mas diria que é hoje mais preocupante do que nunca. Este ano, em fevereiro, à semelhança de anos anteriores, estivemos em situação de alerta na região do Algarve.

É incontornável a variabilidade dos nossos recursos hídricos ao longo do ano e a consequente dificuldade da sua gestão: as albufeiras atingem níveis insustentáveis cada vez com maior frequência e os fenómenos climáticos extremos repetem-se a um ritmo crescente que nos devia levar, enquanto país, a ficar tudo menos parados. Salvaguardar os nossos recursos hídricos é urgente. Como é urgente pensar a questão da água em toda a sua complexidade e abrangência, incluindo no quadro das alterações climáticas.

Está o Estado a fazer tudo o que pode e deve para garantir a disponibilidade de água para gerações presentes e futuras? A água e o saneamento foram reconhecidos como direitos humanos em 2010. São direitos que precisam ser garantidos a todos: ninguém pode ser deixado para trás.

O facto de ainda não haver obrigatoriedade legal de existência de uma tarifa social da água e pensando nas poucas casas de banho e chuveiros públicos que existem e nos horários em que estão disponíveis, tenho sérias dúvidas de que tal aconteça plenamente em Portugal, olhando por exemplo para a comunidade sem abrigo, a comunidade cigana e as pessoas que vivem em bairros informais.

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É preciso implementar alterações de forma a assegurar o acesso de todos a serviços básicos de água, saneamento e higiene, sem restrições de horário.

E, embora existam tarifas de água, será que as mesmas são adequadas e justas? As tarifas sociais de água dependem de cada município e em sessenta deles esta não é aplicada a nenhum dos serviços cobrados na fatura da água.

Ninguém pode ser privado ou limitado no acesso à água por não ter como a pagar – nem ninguém pode ser obrigado a escolher entre pagar a água ou assegurar outros direitos fundamentais, como alimentação ou saúde. São precisas políticas consequentes que protejam o acesso aos serviços de águas.

O modo de determinação das tarifas e as recomendações tarifárias exigem uma profunda reflexão e revisão, para que também se deixem de verificar situações em que municípios vizinhos, com características idênticas e que compram a água à mesma entidade gestora, tenham estruturas tarifárias e preços tão díspares entre si.

Em Portugal, a importantíssima questão da melhor gestão da água passará certamente pela conservação. Mas é preciso também ir muito mais fundo se queremos resultados e mudar a trajetória. É obrigatória uma reavaliação das nossas prioridades sociais e das nossas práticas regulatórias para utilizações urbanas, agrícolas, turísticas e industriais da água.

Existe a tendência de olhar para o consumo individual e aí ficar. No entanto, o consumo urbano representa apenas cerca de 10% do consumo total de água, enquanto a agricultura e a agropecuária consomem 75% e a indústria e outros setores, como a hotelaria, os restantes 15%.

Alguns números ajudam a perceber várias ineficiências no território português. Para reflexão:

  • 21,7% da água captada em Portugal é perdida por ineficiência dos serviços públicos de abastecimento, isto é, devido a roturas, avarias e desvios. Isto representa cerca de 200 milhões de metros cúbicos por ano, quantidade suficiente para abastecer três milhões de pessoas;
  • 28,8% da água distribuída não é faturada;
  • Apenas cerca de 1% a 2% das águas residuais em Portugal são reutilizadas – essa percentagem é de 23% na Califórnia e 20% em Espanha;
  • 80% das disponibilidades de água na parte portuguesa da bacia do Tejo seguem caminho para o mar; ou seja, a capacidade de armazenamento portuguesa destas águas é de 20%, enquanto a espanhola é de 100%;
  • Não se verificam anos húmidos em Portugal desde 2000, que permitiriam encher as albufeiras e recarregar os aquíferos;
  • Nos últimos 20 anos a precipitação diminuiu cerca de 15%, prevendo-se que diminua entre 10 a 25% até ao final do século.
  • Também nos últimos vinte anos a disponibilidade de água reduziu-se cerca de 20%;
  • Cerca de 45% do abastecimento de água em Portugal vem de águas subterrâneas ou sub-superficiais.

Em Portugal a água para a agricultura raramente se mede ou paga. Usamos água subterrânea quase de forma descontrolada e a custo zero (só se paga a eletricidade necessária para o seu bombeamento), o que não cria qualquer incentivo para que os agricultores poupem este recurso e para que o mesmo seja reutilizado. A água subterrânea deve ser vista como o dinheiro que temos na conta poupança no banco – só deve ser utilizada em último caso. Desperdiçamos um volume de águas residuais que equivale a uma barragem inteira do Alqueva – é água que vai diretamente para o mar. Dito isto, a verdade é que nos últimos anos o setor da agricultura tem vindo a modernizar-se, o que tem reflexos diretos na melhoria da eficiência hídrica. Também o governo deve continuar a ajustar os subsídios à agricultura e focá-los em culturas mais adequadas ao nosso clima e que consumam menos água.

Ademais, para que se verifiquem alterações de comportamento empresarial significativas, não basta confiar na boa vontade do mercado para as implementar, principalmente por se tratarem de investimentos consideráveis. São necessárias políticas com incentivos financeiros para que boas práticas sejam implementadas. Podem passar tanto por um aumento de tarifas de água para estes setores, como também pela disponibilização de subsídios para aumentar a eficiência.

Em finais de 2023 foi aprovado o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030, cujo objetivo é assegurar serviços de água eficazes e sustentáveis. É imperativo que este instrumento seja utilizado para desenhar o futuro da água em Portugal e que a sua execução seja monitorizada.

Temos também de melhorar muito os sistemas de reciclagem de água. E temos de melhorar a informação atualizada sobre os recursos hídricos e padrões de consumo atuais e previstos, para que as decisões sejam tomadas de forma informada e sustentável. Precisamos de reabilitar as nossas infraestruturas e garantir a sua resiliência face a alterações climáticas. Quando há coisas a fazer, são boas notícias. É possível melhorar. A única má notícia é anunciar que ficámos parados.

Chegámos a um momento em que já não nos podemos dar ao luxo de esperar que as crises nos obriguem a agir: é preciso começar hoje a tomar boas decisões e a executá-las, a gerir os nossos recursos hídricos de forma sustentável e garantir que este direito fundamental continua a ser assegurado às gerações futuras. Falhar não é opção.

Catarina de Albuquerque é jurista. Foi a primeira relatora especial da ONU para a defesa do direito à água potável e ao saneamento é atualmente presidente executiva da parceria Sanitation and Water for All, que junta organismos da ONU, países e organizações da sociedade civil. É  membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.