Em Portugal, mesmo no período democrático, a liberdade de expressão nunca foi apreciada nem defendida. A Constituição da República Portuguesa protege o direito “ao bom nome e à reputação” das pessoas individuais e colectivas (Artigo 26º) antes de proteger o direito à liberdade de expressão e informação (Artigo 37º) e a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação social (Artigo 38º). Creio ser um indicador significativo das prioridades estabelecidas sobre aquilo que mais valorizamos como sociedade. Também significativo é o facto de os dois serem considerados direitos de igual valor. Por comparação, podemos observar que nem a Convenção Europeia dos Direitos Humanos nem a Constituição dos Estados Unidos da América protegem o direito ao bom nome e à reputação, muito menos em pé de igualdade com o direito à liberdade de expressão. Na verdade, basta o leitor seguir as crónicas regulares do advogado Francisco Teixeira da Mota, no Público, para se dar conta de que a tradição judicial no nosso país quanto a esta matéria é profundamente iliberal. Pior, o Estado Português é frequentemente condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a ressarcir os seus cidadãos (com dinheiro público) por os ter erradamente condenado nos tribunais portugueses, infringindo o seu direito à liberdade de expressão.

No entanto, esta tradição legal é apenas uma pequena parte – e uma expressão – de uma cultura nacional mais lata de falta de apreço pela liberdade de expressão. Num país onde há pouca riqueza e quase todos têm muito pouco a que se agarrar, onde os salários são baixos, a concorrência é pouca, a imprensa é pobre e os grupos económicos dependem do Estado ou de boas amizades, todos têm medo de falar abertamente. Falar abertamente pode significar perder o pouco que se tem ou ver as esperanças profissionais amputadas. Neste meio, só os mais privilegiados têm verdadeira capacidade de falar e de criticar. Aos outros, resta a autocensura. É nesta sociedade que queremos viver?

As constituições e debates políticos, ao longo do último século e por razões históricas, escolheram focar-se na protecção da liberdade de expressão do individuo face ao Estado. A meu ver, este foi um percurso correcto e foco natural por onde começar. Naturalmente, empresas e organizações privadas, ao contrário do próprio Estado, não têm o mesmo poder coercivo e legal e, por isso mesmo, também não têm um passado com as mesmas desgraças históricas pelas quais os Estados foram responsáveis. No entanto, creio que em sociedades onde os poderes de discriminação e censura clássicas por parte do Estado estão efectivamente estancados, devemos agora trabalhar para estabelecer uma cultura para além do Estado que aceite e tolere a crítica e a liberdade de expressão como naturais e positivas, sem medos de retaliação ou processos silenciadores de difamação. Afinal de contas, os cidadãos não precisam apenas de poder exercer o seu livre direito de expressão de jure, mas também de facto. O debate pela liberdade de expressão hoje deve ir muito além do domínio estritamente legal. Deve também ir muito para além das acções do Estado enquanto actor e promotor e censor desta liberdade. A maioria das questões onde hoje se discute o direito à liberdade de expressão nas sociedades democráticas são questões de cultura, não legais.

Na verdade, apesar de assistirmos a frequentes debates sobre as tensões entre o exercício da liberdade de expressão e a denominada “cultura de cancelamento”, num país como Portugal os perigos para o exercício da liberdade de expressão dos indivíduos são menos falados e mais dissimulados. Para a esfera pública, são ameaças bem menos sexy do que as atribuídas ao “wokismo” ou ao “politicamente correcto”, mas são bem mais correntes. Estão presentes nas vidas de todos nós, dos nossos familiares e amigos, todos os dias ou todas as semanas. Falo do ambiente sistémico de censura e autocensura que patrões, empresas, órgãos de comunicação social, universidades e as mais variadas organizações estabelecem para os seus trabalhadores. Queremos viver numa sociedade em que uma entidade patronal pressiona a saída de um colaborador sempre que ele critica opções do patrão ou de outros empregados da mesma empresa? E quantos cidadãos são, semanalmente, prejudicados no avançar da sua carreira ou até mesmo em concursos públicos, devido às suas opções políticas e ideológicas e porque, apesar dos riscos, optaram por falar e expor as suas divergências, em vez de as calar? Quantos colunistas e jornalistas são promovidos por escreverem opiniões favoráveis a quem interessa e outros que são travados por escreverem aquilo que realmente pensam?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dir-me-ão que quem quer falar pública e livremente deve aceitar as consequências das suas palavras. Afinal de contas, a retaliação profissional ou a ostracização social são perfeitamente legais e também elas resultado de decisões livres de outros indivíduos, que têm direito a fazê-las. Verdade. No entanto, também é verdade que, numa sociedade liberal, essas consequências não podem ser demasiado penalizadoras para o individuo, demasiado desproporcionais, sob pena de se gerar uma atmosfera sistémica em que demasiados se calam e quase ninguém expressa as suas divergências. Lembremo-nos que, para além do valor intrínseco da liberdade, esta também encerra em si um valor instrumental: quando todos são livres de expressar as suas divergências dentro das organizações e das sociedades, sem medo de exclusão ou receio da sua pertença ser posta em causa, são as próprias organizações e sociedades que melhoram ao incorporar essas críticas e essa autorreflexão. Como nos avisou um famoso politólogo, se não aceitamos oposição dentro de uma instituição, criamos uma situação em que só é possível oposição à própria instituição e ao sistema como um todo.

Uma forma de defendermos a liberdade de expressão para além da esfera do Estado e dos tribunais é através de uma sociedade civil forte e efervescente que, no seu conjunto, valorize essa liberdade e penalize a reputação das organizações que não a respeitem ou que tomem decisões erradas. Por exemplo, recentemente, soubemos que o colaborador da BBC Gary Lineker, que havia sido dispensado da BBC por ter exprimido uma opinião controversa no Twitter, foi reintegrado na estação televisiva. Porquê? Porque a sociedade civil britânica não aceitou tal dispensa como aceitável numa sociedade livre e criticou aguerridamente a BBC. Esta viu-se obrigada a recuar. Infelizmente, estou quase certa de que a anemia da sociedade civil portuguesa não teria a mesma força e nem sequer a mesma vontade. Como mudar isso? Não sei, mas sei que é essencial que, não só mais gente não tenha medo de falar e de efectuar críticas fortes na sua própria vida, mas também que se ganhe, na esfera pública, mais tolerância e flexibilidade ao acto de ofender e ser ofendido e de ouvir coisas com as quais não concordamos.

Acresce ainda que, numa sociedade liberal, certas instituições, como os órgãos de comunicação social ou as universidades, devem ser sujeitos a um padrão ético relativo à liberdade de expressão e à tolerância à divergência ao de outras empresas ou organizações. Em Portugal, não só isso não acontece, como são muitas vezes instituições especialmente fechadas e onde reina o pensamento único. Um jornal ou um departamento académico deve ter orgulho em albergar nas suas páginas ou nos seus corredores um debate combativo de ideias. Os processos por difamação são, na verdade, uma ferramenta mais própria de regimes autoritários ou iliberais para silenciar opositores de forma aparentemente legal.

Eu quero viver numa sociedade em que possa criticar livremente o Observador ou o Expresso, o Primeiro-Ministro e o Presidente da República, os meus patrões e os donos de empresas, os sindicalistas e outros activistas, os meus vizinhos e todos em geral. O preço a pagar por essa liberdade é aceitar que outros também me critiquem livremente. Se for necessário, ir a tribunal e aceitar (apenas) as consequências legais e proporcionais. Mas o preço não deve ser retaliação profissional ou a ostracização social – mesmo que estas sejam perfeitamente legais. Inevitavelmente, aceitar este preço é criar uma sociedade baseada no medo, onde os perdedores e os mais fracos não podem dizer o que pensam nem participar na esfera pública, em pé de igualdade. Não é esse o país onde quero viver. Até porque nunca sabemos quem são os perdedores de amanhã.