Ao ler aleatoriamente algumas obras de escritores russos e de países da Europa de leste, escritas ainda no tempo da União Soviética, aquilo que mais me impressionou foi a ânsia de liberdade que perpassa por algumas delas, a identificação que os autores fazem de liberdade com vida no sentido mais primordial do termo, e de ausência de liberdade com morte, a noção de que o sistema soviético era, mais do que qualquer outra coisa, anti-vida.
Vaclav Havel dizia no seu texto “The Power of the Powerless”: “Between the aims of the post-totalitarian system and the aims of life there is a yawning abyss: while life, in its essence, moves toward plurality, diversity, independent self-constitution, and self-organization, in short, toward the fulfillment of its own freedom, the post-totalitarian system demands conformity, uniformity, and discipline. While life ever strives to create new and improbable structures, the post-totalitarian system contrives to force life into its most probable states.”
Vassili Grossman já reflecte sobre esta ideia em “Vida e Destino”, mas é sobretudo no seu livro “Tudo Passa” que ela se exprime de forma mais pungente e dramática. Dizia ele: “… a história humana é a história da liberdade, da mais pequena à maior, a história de toda a vida, desde a ameba até ao género humano, é a história da liberdade, sim, e da transição da liberdade menor para a liberdade maior, e da própria vida que também é liberdade. E esta fé dá-me força, e ponho-me a apalpar, no meio dos farrapos prisionais, um pensamento precioso, luminoso: ‘Tudo o que é desumano é absurdo e desaparece sem deixar rasto’.”
Mas foi ao ler mais recentemente o livro “The Logic of Liberty” de Michael Polanyi que encontrei uma abordagem mais sistemática desta questão da relação entre liberdade e vida. Este livro dedica-se em grande parte a explorar a dinâmica e a importância de sistemas de ordem espontânea nas sociedades, utilizando como exemplo principal a ciência enquanto um caso de sistema de ordem espontânea intelectual. Para Michael Polanyi, sistema de ordem espontânea numa sociedade humana consiste num agregado de indivíduos ou instituições independentes que interagem uns com os outros por sua própria iniciativa e ajustam-se mutuamente ao serviço de certos objectivos e tarefas, estando sujeitos apenas a leis que se aplicam uniformemente a todos eles. O contraponto a um sistema de ordem espontânea é um sistema de ordem deliberada.
Tendo eu formação em Medicina, sei bem que toda a vida, pelo menos no sentido material, físico do termo, desde a mais pequena bactéria até aos seres multicelulares mais complexos, como nós próprios, é constituída por sistemas de ordem espontânea que se foram formando, em liberdade, ao longo de biliões de anos, a partir da matéria inanimada. Todos os seres vivos sem excepção são constituídos por agregados de elementos individuais que se ajustam espontaneamente uns aos outros por mecanismos de autoregulação, com o objectivo de manter o conjunto, sem que haja necessidade de qualquer comando central a determinar a função de cada um dos elementos individuais.
Mas a ordem espontânea não existe apenas em cada um dos seres vivos isoladamente. Muitas comunidades de animais formam sistemas de ordem espontânea, e, como seria de esperar, eles também aparecem nas sociedades humanas. Nestas últimas, o exemplo talvez melhor conhecido é o da economia de mercado, cuja emergência não é fruto da acção deliberada, consciente, de nenhum agente ou grupo de agentes, como o fez ver Adam Smith através da sua metáfora da “mão invisível”. Outros exemplos de sistemas de ordem espontânea que emergiram nas sociedades humanas, e de que fala Michael Polanyi, são, para além da ciência, já referido, a lei comum inglesa, a língua, a moral, as artes, o pensamento político e religioso, e muitos outros ramos da cultura humana.
Os sistemas de ordem espontânea existentes nas sociedades humanas têm as características de toda a vida – são delicados, complexos, intrincados, multifacetados, fractais. Como explica Michael Polanyi, eles cumprem funções que nenhum sistema de ordem deliberada pode cumprir. Pela sua natureza, têm capacidade para organizar grandes números de elementos (indivíduos ou instituições), o que nenhum sistema de ordem deliberada consegue, mesmo recorrendo a formas extremas de totalitarismo. Foram estas funções que deram origem às sociedades modernas complexas em que vivemos. A civilização ocidental é em grande parte fruto dos seus sistemas de ordem espontânea, tanto do ponto de vista económico como intelectual e moral. Como este autor demonstra detalhadamente no seu livro acima referido, as tentativas de planificar a nível central a economia e a ciência, feitas na União Soviética, revelaram-se uma impossibilidade, mas não deixaram de causar danos imensos.
Estes sistemas de ordem espontânea enraízam-se nas forças profundas da vida, daí a sua resiliência, adaptabilidade, flexibilidade, fluidez. Não foi por acaso que o socialismo soviético, construído deliberadamente de raiz, tentando fazer tábua rasa de todas as tradições anteriormente existentes, se desmoronou como um castelo de cartas, apesar da sua aparência inexpugnável. E em seu lugar ressuscitou o velho capitalismo, e, não menos importante para o caso, o espírito religioso. Não foi por acaso também que, ao contrário do que Marx preconizara, a revolução socialista não aconteceu em primeiro lugar nos países mais industrializados da Europa, mas foi acontecer num país com um capitalismo atrasado e praticamente sem classe média. É exactamente a este facto, um capitalismo atrasado, que Peter F. Drucker atribui o sucesso da revolução socialista na Rússia, e o seu insucesso em países de capitalismo mais avançado, como a Alemanha ou a Inglaterra. A existência de um capitalismo forte e de uma classe média extensa e heterogénea, profissionalizada, com interesses diversificados, gerada pelo próprio capitalismo, e que em grande medida tinha absorbido e substituído o proletariado, protegeu estes últimos países, tornou-os resilientes contra a revolução socialista.
Sistemas de ordem espontânea não significam anarquia, como habitualmente se pensa. O caso da ciência é paradigmático a este respeito. Voltando a Michael Polanyi, a opinião científica exerce um controlo apertado, ainda que mais ou menos informal, sobre os padrões da ciência, não permitindo a sua degradação. Existe, sublinha ele, como que uma constituição não escrita da ciência, à semelhança da constituição não escrita do Reino Unido. Pelo contrário, estes sistemas conseguem ordem onde, devido ao elevado número de indivíduos e instituições em interacção, não é possível obtê-la de qualquer outra maneira. Mas tudo isto não significa que estes sistemas de ordem espontânea não tenham limitações ou inconvenientes. Claro que têm. São apenas, para usar as palavras de Michael Polanyi, “a relative optimum”. Já ninguém defende, por exemplo, um capitalismo selvagem. A luta pela humanização do capitalismo tem sido uma constante nos últimos séculos e está longe de ter chegado ao fim.
Mas vem tudo isto a propósito da distinção feita por Michael Polanyi entre liberdades privadas e liberdades públicas. As liberdades públicas consistem, segundo ele, em permitir que acções independentes de indivíduos ou instituições se auto-coordenem espontaneamente ao serviço de certos objectivos e tarefas. Ele considera que estas últimas são mais importantes que as liberdades privadas para a estruturação das sociedades. Diz mesmo que “a free society is characterized by the range of public liberties through which individualism performs a social function, and not by the score of socially ineffective personal liberties”. Embora defendendo que as liberdades privadas também devem ser preservadas, ele considera que muitas delas são socialmente sem consequência, e que por isso foram permitidas por regimes totalitários, como foi o caso da União Soviética. Diz ele que na Rússia de Staline as liberdades privadas eram muito mais amplas do que na Inglaterra da Rainha Vitória, enquanto que exactamente o contrário se passava com as liberdades públicas. Talvez isto ajude a perceber porque é que parte da nossa esquerda é defensora acérrima de certas liberdades privadas, mas se opõe ferozmente às liberdades públicas.
Em Portugal ainda é muito forte, sobretudo à esquerda, o preconceito de princípio, ideológico, contra os sistemas de ordem espontânea na sociedade. Em geral, a esquerda pura e simplesmente nega a sua existência, ou não reconhece a sua realidade. Para a esquerda quase tudo onde há algum tipo de ordem tem de ser fruto da acção deliberada dos seres humanos, quer na economia, no direito, na moral, na vida intelectual, nas artes. Daí o à vontade e a falta de cuidado com que interfere em todas estas áreas: na economia, privilegiando o Estado em detrimento de instituições da sociedade civil em muitas actividades, ou fazendo muitas vezes leis dificilmente exequíveis e que surgem aos olhos dos cidadãos como absurdas; na justiça, procurando submetê-la aos seus interesses; para não falar das tentativas de controlo da informação e dos constantes atentados à liberdade de pensamento, neste tempo do politicamente correcto.
Não atender aos sistemas de ordem espontânea da sociedade, bloqueá-los ou dificultar de forma arbitrária e preconceituosa a sua dinâmica, é o equivalente, a nível da sociedade, da falta de respeito pela natureza física que nos levou aos desastres ambientais que conhecemos. Provém da mesma tradição intelectual do positivismo, que nos conduziu á atitude sobranceira de que tudo é controlável pelos poderes da razão. É não reconhecer que a acção humana pode ter consequências inesperadas. Assim como há limites às intervenções que são possíveis na natureza sem a danificar, também há limites às intervenções que são possíveis nas sociedades sem dificultar ou atrofiar o seu desenvolvimento. Para já não falar das tragédias sociais que intervenções políticas abusivas podem provocar, e de que há tantos exemplos ao longo do século XX e ainda nos dias de hoje. Volto a salientar mais uma vez que, ao dizer isto, de modo nenhum estou a implicar que os sistemas de ordem espontânea sejam perfeitos e sem falhas e não necessitem de melhoramentos e vigilância.
Em Portugal a esquerda e o governo têm dedicado um enorme esforço para aprovar e implementar certas liberdades privadas, ao mesmo tempo que algumas liberdades públicas previamente existentes são paulatinamente reduzidas ou eliminadas. Não estou, com isto, a emitir nenhum juízo de valor contra as liberdades privadas. Pelo contrário. Mas reconhecer a importância e o valor intrínseco dos sistemas de ordem espontânea para a criação de uma sociedade livre significa no nosso caso defender e alargar o âmbito da iniciativa privada na economia, a independência da justiça, a criação de um sistema educativo autónomo e livre associado a liberdade de escolha das famílias, a independência da ciência, das artes, da cultura e do pensamento em geral. No tempo do politicamente correcto isto não é pequena tarefa. Mas significa ainda mais uma coisa que actualmente está fora de moda: dar valor e aceitar como uma coisa real a nossa herança intelectual, moral e histórica, nacional e do Ocidente, fruto dos tais sistemas de ordem espontânea em que consciente ou inconscientemente estamos integrados, não para a manter estática, mas apenas porque só a partir dela alguma coisa que valha a pena pode ser alcançada. Se não atendermos a isto, tudo o que fizermos acaba, como na profecia certeira de Vassili Grossman sobre a União Soviética, por desaparecer sem deixar rasto.