A fronteira entre a Sérvia e a Croácia constitui um caso curioso. Inicialmente, foi estabelecida de forma bastante trivial: o ponto de separação entre os dois países seria o rio Danúbio. Porém, depois do advento da engenharia hidráulica ter contribuído para a alteração do curso deste rio, instalou-se um dilema: deveria a delimitação fronteiriça servo-croata manter-se intacta ou continuar a respeitar os limites danubianos? Até hoje, não se chegou a um consenso. A Croácia defende a primeira opção e a Sérvia a segunda.
A discrepância entre aquilo que eram os anteriores limites do Danúbio e aquilo que são os atuais deixa mais de 100 quilómetros de terra sob controlo dúbio. As localidades situadas a este do rio pertencem, de jure, à Sérvia, mas são reivindicadas pela Croácia. Com a margem oeste, porém, acontece algo diferente: os croatas atribuem as terras aos sérvios, que não as reivindicam. Ocorre aqui, assim, um fenómeno pouco observado no Direito Internacional – um caso de terra nullius (“terra de ninguém”).
Gornja Siga é o maior destes pedaços de terra não reivindicados. Em 2015, Vit Jedlička, um cidadão checo, militante do Partido dos Cidadãos Livres do seu país, hasteou uma bandeira no local e proclamou a República Livre de Liberland, um novo microestado europeu que pretende colocar em prática as ideias do libertarianismo, com governo, constituição, hino e lema nacionais e língua e moeda oficiais. Com Jedlička na presidência, Liberland conta, ainda, com vice-presidente, primeira dama, secretário de Estado e ministros dos Negócios Estrangeiros, Interior, Finanças e Justiça. A sua constituição tem três capítulos, cada um com diversos artigos, relativos a princípios fundamentais, instituições políticas e direitos pessoais. Os principais valores nacionais são a vida a liberdade e a propriedade, espelhados no lema “vive e deixa viver”. O idioma oficial é o inglês e a moeda é o mérito liberlandês.
Vit Jedlička soube da existência de um território sem país e aproveitou esse facto para criar um novo. Contudo, coloca-se a questão: poderá Liberland ser considerada um Estado legítimo e soberano?
Atualmente, a micronação é reconhecida por cidadãos individuais, por alguns partidos políticos, pelos Estados não reconhecidos da Somalilândia e de Sealand e até pela Comissão Europeia. Contudo, falta-lhe reconhecimento por parte de entidades importantíssimas para a formalização de um Estado, como Estados oficiais e a Organização das Nações Unidas (ONU).
Segundo a definição da ONU, decorrente da Convenção de Direitos e Deveres do Estado em 1933, um Estado, para ser soberano, deve reunir quatro condições: população permanente, território definido, governo e capacidade de contrair relações com outros Estados.
É inequívoco que Liberland apresenta, pelo menos, duas destas características: governo e território.
As questões governamentais já foram expostas. O território, por sua vez, também está claramente definido. Apesar de ser uma área pequena (7km²), Liberland é, ainda assim, maior que o Mónaco, que corresponde a apenas 2km² e é reconhecido como Estado pela ONU desde 1993. Pode argumentar-se que a reivindicação de Jedlička sobre a área de Gornja Siga é ilegítima e que o caso de Liberland difere bastante dos casos dos Estados soberanos mais jovens do mundo, como Timor-Leste, Sudão do Sul e os países ex-Jugoslávia e ex-URSS, que obtiveram independência no seguimento de guerras ou desintegrações. Desde a autoproclamação de Liberland, que a Sérvia rotulou o projeto como “frívolo” e que a Croácia demonstrou desagrado, chegando a barrar a entrada a Jedlička. Contudo, ambos os países continuam a descartar qualquer interesse na região. Isto suscita algumas reflexões. Num mundo onde grande parte dos conflitos se deve a disputas territoriais, será justa a existência de locais não reivindicados?
Deixando a pergunta no ar, passemos aos restantes dois aspetos que um Estado deve albergar – população permanente e capacidade de contrair relações com outros Estados. De acordo com o seu site, Liberland afirma ter ambos.
Relativamente à capacidade de estabelecer relações com outros Estados, a micronação tem demonstrado aptidão para construir relações diplomáticas, possuindo escritórios representativos em 72 países, espalhados pelos cinco continentes! Adicionalmente, em 2017, assinou um Memorando de Entendimento com a Somalilândia, que prevê a cooperação nos setores bancário, energético e tecnológico.
A questão da população, todavia, não é tão clara. Liberland possui, neste momento, cerca cinco mil cidadãos – um número bastante reduzido mas não muito distante daquilo que é a população de Tuvalu, o país menos populoso do mundo, com cerca de dez mil habitantes. Para além destes cinco mil indivíduos, outros 700 mil já se candidataram à cidadania liberlandesa. Num potencial cenário em que estes últimos se tornassem, de facto, cidadãos, Liberland seria o 163° país (em 197) mais populoso do mundo caso se tornasse um Estado soberano, ultrapassando países como o Luxemburgo ou o Montenegro.
Porém, parece peculiar que um território de 7 km² tenha 700 mil habitantes, não é? E é aqui que surgem as dúvidas em relação a Liberland ter, realmente, uma população permanente. A maior parte dos cidadãos liberlandeses são, na verdade, e-citizens, ou seja, cidadãos virtuais que podem nunca ter pisado o solo de Gornja Siga. Segundo as entidades oficiais que contactei, o estabelecimento de uma população dita “presencial” está em processo de desenvolvimento.
Se Liberland conseguir fixar habitantes, fica apta para concorrer ao estatuto de Estado soberano, visto que as restantes três características necessárias para tal aparentam ser verificadas. Em suma, o maior desafio deste potencial microestado é, sem dúvida, uma questão de população!