A súbita orfandade em que se viram após aquela inesperada demissão obrigou rebanhos de comentadores, engordados por oito anos de pastoreio de António Costa (em cujos expedientes teimam, ainda hoje, ver “sagacidade”, “brilhantismo” e “perspicácia”), à transumância de semelhantes, digamos, raciocínios para pasto mais fresco e, até ver, mais promissor – o novel terneiro que desponta no prado socialista, Pedro Nuno, primeiro de sua graça na linhagem do Rato. E, diante das atléticas inflexões que a queda do suserano impôs à juvenil starlette, é vê-los, em excitação espasmódica, a exaltar-lhe a “agilidade”, a “destreza” e, juro!, a “ponderação”: afiançam eles que a abjuração de quase tudo o que ainda há poucos meses a criatura asseverava (da localização do aeroporto, aos destinos da TAP passando pelo cumprimento deste novo orçamento) não denuncia, que disparate!, a emergência de um latente  contorcionismo vermicular que a inopinada queda do Governo pôs a nu, mas um conspícuo sinal da sua “maturidade” e “preparação”!

Circunscritos às obras disponibilizadas pela biblioteca de Vítor Escária – auto-ajuda, folhetos do Lidl e cerca de 75.800 fascículos coloridos em edição esmerada do BCE – acontece-lhes confundir talões de supermercado com sonetos e Tucídides com um reforço do Alverca. Frequentassem eles, por breves que fossem, uns quantos capítulos desse general e talvez tivessem percebido a tempo que, já nos idos de desmoronamento da democracia ateniense, um dos primeiros sintomas de crise se manifesta na deterioração do léxico – quando a bajulação, por exemplo, ganha foros de lealdade e a conspiração ascende a peculiaríssima forma de esperteza. A sabujice destes tristes vassalos, contudo, é de tal modo espongiforme que nada de melhor lhes ocorre senão invocar a “verticalidade das convicções” do jovem infanção de S. João da Madeira – algo que deixaria Lineu à beira de uma apoplexia dado moluscos gastrópodes no filo chordata serem uma impossibilidade para a prodigiosa harmonia do reino animal.

Penso ser preferível, na verdade, ver nesta viscosidade larvar de Pedro Nuno uma particularíssima forma de reminiscência – aquela teoria platónica segundo a qual o conhecimento humano se reduz a uma simples recordação actual das ideias que a alma intuiu ou contemplou directamente numa existência anterior. No entanto, embora Platão pretendesse, com este mito da preexistência da alma, responder aos sofistas – que afirmavam a inutilidade da investigação do que já se sabe e a impossibilidade de se conhecer aquilo de que nada se sabe ainda – a anamnese de Pedro Nuno transforma a inanidade em todo um programa político: subitamente exposta à incandescente e incómoda luz de um escrutínio e de uma eleição, é natural a sua alma já não conseguir reconstruir com fidelidade o caminho até ao mundo das ideias e ei-la a recordar-se, como se fosse hoje, dos lancinantes contornos do “radicalismo da direita” enquanto vê perderem-se no branco glaucoma do oblívio indemnizações milionárias apalavradas naquele grupo de whatsapp que ele havia reservado para a troca brejeirices e horários de padel.

Por entre trôpegas veredas de memórias difusas, o jovem infante aproveitara já esta última semana para protagonizar um dos mais emocionantes e libertadores coming out, da história política quando confessou – trémulo, compungido e timorato – que jamais fora esquerdista, mas antes um ferrenho social-democrata coagido desde a infância à clandestinidade e ao opróbrio: convicto da excelência da economia de mercado e da liberdade individual, do mérito, do trabalho e da salvaguarda da propriedade privada, recolhia pela manhã os lençóis sujos pelas poluções nocturnas provocados pelos sonhos com uma sociedade burguesa e consumista (Porsche, Defender, fatinhos de fino corte) e ia lavá-los, ainda o sol vinha por terras de Espanha, aos tanques comunitários da freguesia onde, por trás de uma pedra, ocultara o seu oratório em que ardia em lume perpétuo uma velinha diante da pagela de Hayek.

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Um coração liberal treme só de imaginar o ror de festas familiares em que, fatia de broa numa mão e malga de verde na outra, foi obrigado a comer sardinhas com as mãos e a cantar A Internacional enquanto, de lábio trémulo e gorduroso, sonhava com as festas do Patiño, ou a vergonha que sentiu quando, num grupo de teatro infantil, lhe calhou uma deixa em que tinha de fazer voz grossa a banqueiros alemães, logo ele que, para o bacio, não conseguia senão verter duas ou três pingoletas, luzidias e nada viris, de urina. Comovida com o seu sofrimento, a Câmara sanjoanense organizou nesse mesmo dia uma marcha, com charanga e confetti, para celebrar o orgulho de mais uma alma que, após anos de silêncio e reclusão, pôde por fim assumir-se em público como verdadeiro social-democrata que sempre foi, cruzando, de cabeça erguida, as veredas da liberdade.

Na Roma Antiga, o mijo das latrinas públicas era um bem apetecível: cobiçado por curtidores de peles e por lavadeiros, o Estado encontrou aí uma infalível fonte de receitas, ao ponto de Vespasiano – uma espécie de socialista do Palatino – ter taxado o precioso líquido, obrigando todos aqueles artesãos a pagar principescamente pela urina pública. Quando Tito, o seu filho, lhe censurou a ganância, Vespasiano, esfregando-lhe no nariz uma moeda de ouro que recebera daquele novo imposto, perguntou-lhe se cheirava mal.

Como bom socialista, Pedro Nuno sabe que o capital não tem bandeira e, mesmo que vindo das latrinas, também não tem cheiro.