As palavras crítico ou crítica, que tendem a provocar urticária na cultura contemporânea, constituem derivações indiretas do verbo grego krinô, “julgar”. O substantivo dele derivado, kritês, significava simplesmente alguém que procede a julgamentos, juízos. Para os gregos, kritês poderia assumir um sem número de significados: um árbitro numa disputa; um historiador (que, segundo um autor grego do século II d.C., deve abordar a sua matéria à imagem de um juiz inquiridor num processo); um intérprete de sonhos; ou um dos jurados que avaliavam os ferozmente competitivos concursos teatrais realizados todas as primaveras em Atenas. Aristófanes adorava intercalar a ação das suas comédias com apelos lisonjeiros a um qualquer kritês que assistisse ao espetáculo. Não raro, ele vencia.

Crítica, portanto, é um vocábulo com um rico e sugestivo estalão, à semelhança de outros, aliás, derivados do mesmo étimo – palavras como critério (um instrumento de juízo, um padrão) ou crise, que em grego significa uma separação, um poder de distinção; um julgamento, um instrumento de juízo.

Um olhar frio, franco e destemido sobre as feridas que tantas vezes abrimos cauteriza a nossa vulnerabilidade no tição do rigor e da beleza: são as crises, enfim, que, mapeando o nosso percurso, lhe conferem a espessura da responsabilidade. Pois o que será uma crise, afinal, senão um acontecimento que nos obriga a distinguir o crucial do trivial e, instando-nos a revelar as nossas prioridades, nos leva a aplicar critérios mais rigorosos no justo juízo das coisas?

Beethoven confessou ter composto o seu Quarteto de Cordas n.13 durante um dos mais solitários e melancólicos períodos da sua vida, embora não tenham sido poucos os que, desde então, se deixaram surpreender nos compassos da Cavatina, pela mais perfeita definição da alegria – aquela tensão que jamais se furta à franqueza do sol e da saliva.

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Como os gregos bem sabiam, é a constante ameaça da vulnerabilidade que confere significado à pequena parte do universo que constitui a nossa vida. A derradeira necessidade de sucumbir a realidades duras, inexplicáveis e alheias ao nosso arbítrio é uma verdade trágica a que grande parte da cultura contemporânea deseja furtar-se, preferindo jejuns intermitentes de Cerelac, Mariana Mortágua, pieguice, Pedro Nuno Santos e manhosos melodramas.

Uma recentíssima intervenção de Carlos César – armando treliça para a voz tremebunda e enfunando a gola do albornoz com pestífera sobranceria, anunciou que “apenas uma grande votação no PS garante a retoma da estabilidade política” – confirmou-me caricatamente esta crónica repulsa por crises (e pela maçada, Deus meu, das eleições!) partindo de dois princípios algo cómicos: primeiro, o de, nestes últimos oito anos, termos alguma vez experimentado a tal da estabilidade que César diz querer agora resgatar; e segundo, o de o PS, mesmo que em clandestino concubinato, ter alguma vez mantido com a estabilidade uma relação suficientemente próxima para ser capaz de reconhecê-la.

Na verdade, oito anos passados sobre reversões e rasgadas páginas de austeridade, galambices sortidas e golas anti-fumo, escolas disfuncionais e homicídios às mãos do SEF, despachos clandestinos e pavilhões transfronteiriços subitamente eclipsados, secretários de estado com um prazo de validade inferior ao de uma alface e um aluimento geral dos serviços públicos, colapso do SNS e inauditas buscas em S. Bento, é natural que até César sinta falta daquilo que em tempos idos, confundindo-se com aquela decência humana básica que poupava os anciãos à humilhação de 18 horas numa urgência, se chamava efetivamente normalidade.

Presidindo à agremiação responsável pelo cenário, figurinos, texto, casting e preço dos ingressos, bem pode o dr. César, confundindo enxúndia com brilhantina, simular urbanidade e fleuma enquanto lamenta, por julgar deplorável e desnecessária, a interrupção daquela farsa que, por misericórdia e nojo, chamámos durante oito anos governo, enquanto um coro de organismos unicelulares e as carpideiras do costume o adulam em dós de peito. Se eles soubessem quanta catarse pode haver numa crise…

A longa exposição à acerba beleza de uma língua clássica – a gramática dura e impassível, as inflexíveis exigências da sintaxe e as intransigentes imposições da métrica, nenhuma admitindo improviso ou aproximação – pode desenvolver um gosto por um certo tipo de rigor; pode-se até começar a procurá-lo noutros lugares – em todo o lugar, na verdade – e a exigir também para as impossíveis suturas da memória e do passado um coração limpo e inteiriço.

A referida Cavatina de Beethoven foi uma das composições escolhidas para integrar o célebre disco que a Nasa, em 1977, enviou na Voyager para o espaço sideral. Surge imediatamente a seguir ao blues Dark was the Night, Cold was the Ground de Blind Willie Johnson – um cego e um surdo, lado a lado, nas faixas do vinil, explorando as fronteiras da alegria.

A Voyager 1 entrou no espaço interestelar em 2012. César, esse rhetor leporino, lá vai dando a sua ocasional voltinha nocturna pelo Rato onde, migando pesporrência aos pombos municipais, se vai aliviando dos males de flato e desfaçatez…