“Nunca Lisboa esteve tão suja”
(frase feita, repetida ao longo da história)
Relatos de uma cidade suja e fedorenta temo-los há séculos (por exemplo na descrição de Thomas Cox, de 1701, provavelmente a mais antiga feita por um estrangeiro). Os regimes foram mudando, os tempos e hábitos (“cuidado: água vai”) também, já não são bois a puxar contentores (e a deixar as ruas cheias de bosta), assim como mais recentemente, mudam os partidos e suas caras. Não obstante, os problemas com o lixo teimosamente permanecem. Será mesmo verdade que a cidade nunca esteve tão suja?
Mesmo em tempos recentes, não é fácil encontrar resposta cabal para se dizer com segurança se Lisboa está ou não mais suja. Rui Martins, colaborador deste jornal, tentou algumas abordagens para responder à questão: numa delas analisou as queixas no portal “A Minha Rua” entre 2017 e 2023, e o ano com mais queixas foi 2021. Mas mais: em todos os anos analisados, o lixo foi sempre o maior motivo de queixas. Todavia, não só as queixas não são um espelho fiel da realidade, como a plataforma é usada pelos próprios serviços autárquicos (Câmara e Juntas de Freguesia que registam ocorrências – e depois as resolvem), desvirtuando os números obtidos. Num outro exercício, recorreu às imagens do Google para monitorizar o lixo em redor de ecopontos desde 2009, embora também aqui se tenha deparado com várias dificuldades, por exemplo por alguns anos ficarem sem informação. O pior ano por esta via? 2014. Seguido por 2020, 2019 e 2024 respetivamente.
Não só os métodos têm grandes falhas, como o contexto vai mudando, tanto na quantidade de lixo produzida, como nos fluxos de pessoas, sejam elas turistas, que aumentaram em anos recentes, com uma interrupção na altura da pandemia, sejam moradores, que estiveram em casa nesse mesmo período e possivelmente com uma percepção diferente face ao serviço municipal e talvez uma diferente predisposição para queixas, sejam mais recentemente os emigrantes ou os sem-abrigo que continuam a aumentar, a que se juntam precariedade, greves, etc…
Ainda assim, não havendo uma resposta clara por um lado, por outro facilmente percebemos que o lixo é um problema recorrente e que não conhece cor política: se em 2024 temos os eleitos do PS e do BE a acusar Carlos Moedas e “incompetência e incúria”, em 2018 tínhamos Fernando Medina a desculpar-se com o aumento de turistas e Margarida Penedos, deputada municipal e aqui colunista, bem como Assunção Cristas, então vereadora, ambas a lembrarem que “há zonas que não têm o problema do turismo e sentem isso com igualdade”, ou Inês Sousa Real, hoje deputada única do PAN na AR, a dizer que “é inegável que Lisboa está hoje mais suja” (por “hoje”, leia-se 2018); recuando mais, já em 2013 dizia Henrique Raposo no Expresso que “António Costa tornou-se sinónimo de Lisboa suja, desorganizada, mal cheirosa e local aprazível para colónias de ratazanas e baratas”.
Que o problema não é de fácil resolução, todos o deviam saber, aqui, em Bruxelas, em Nova York ou em qualquer grande cidade do mundo. Que não há sistemas perfeitos (e há vários, desde recolher à porta o indiferenciado e pontos para o separado, a recolher à porta o separado com pontos fixos para o indiferenciado, de caixotes a sacos, passando pela cobrança pelo peso de lixo ou, em sentido contrário, no pagamento como icentivo à separação, etc.), também todos o deviam saber. Que os custos são cada vez maiores, também só não sabe quem não quer: afinal os ordenados têm aumentado, os combustíveis idem, bem como a própria produção de resíduos per capita ou o número de visitantes, etc.
Pelo que também todos deviam saber que quem tem telhados de vidro não devia atirar pedras. Contudo, se sabem, esquecem-se, e as guerras do lixo têm sido constantes, com passa-culpas seja entre Câmara e Juntas, seja entre partidos políticos, uns defendendo ideias há mais de uma década (como a recolha ao domingo ou a contestação à descentralização de competências) e que depois não concretizam quando têm oportunidade, outros a apresentarem balas de prata, talvez por saberem que não dispararão tão cedo… Na verdade todos têm outras prioridades – de websummits ao metropolitano, passando por unicórnios, visitas papais, feiras populares, santos populares, orçamentos participativos, ciclovias, etc., etc., etc… Legítimas, diga-se. Mas então evitem esta política baixa, que os envergonha a todos, e no fim, quem se lixa com o lixo são os cidadãos.
Cidadãos, que até pagam impostos e taxas para o efeito, que não só ficam atolados em imundice, como ainda são apontados como culpados – “falta de civismo” dizem presidentes, vereadores, deputados, técnicos, varredores, etc., ao longo dos anos, querendo convencer-nos que o sistema é bom, os cidadãos é que não colaboram. O sistema único de Barcelona é exemplificativo: um sistema de sucção, moderno, tecnológico, sem veículos, etc., enfim, único no mundo, e constantemente inoperacional por desrespeito das regras pelos utilizadores. Um mau sistema, uma má política, portanto. Nada que esteja dependente da (boa) vontade dos cidadãos é bom.
Ato contínuo, e não sendo invenção de Moedas, porque por exemplo Costa também o fez, voltamos a ter os cata-lixo. Fiscais a vasculhar o lixo para multar incumpridores. Estúpido e ilegal. E não só temos a conta do banco, o exame médico ou a carta de amor a serem vistas pelo fiscal – que é feito da proteção de dados? – como o tipo que mora em Belém a ser multado no Lumiar, ou o que até colocou o lixo no lixo a ser multado porque passou um sem-abrigo que espalhou o lixo todo pelo passeio.
Pior, é um espelho das transformações que temos vivido: cada vez pagamos mais, cada vez somos pior servidos, e cada vez mais temos o Pai-Estado em tudo e em todo o lado: no quintal a ver se limpamos o mato, no caixote do lixo, no wc a ver se despejamos óleo na sanita, um dia (proposta do PAN) na cama a ver quem tira o preservativo a meio do ato… Certo é que Lisboa, como Luísa Schmidt lhe chamava ainda em finais do séc. XX no seu “Portugal Ambiental”, continua porca… E se os cartazes socialistas são vergonhosos, esta reação não é melhor… Com tanto lixo atirado de um lado para o outro, a política na capital é cada vez mais uma javardice.