Retomando a série de sugestões de leituras para férias, gostaria hoje de destacar cinco muito meritórias traduções portuguesas de autores estrangeiros (dois americanos, dois britânicos e um francês). E não uso a expressão “muito meritórias” por mera cortesia. São cinco livros de grande qualidade — que não têm garantidas largas audiências. A sua publicação entre nós é um gesto de cidadania democrática.

 Começo pelo livro do norte-americano Yuval Levin, O Grande Debate: Thomas Paine, Edmund Burke e o nascimento da Esquerda e da Direita (Escolar Editora, 2018). Trata-se de um pequeno grande livro. Recorda-nos o inspirador debate entre Edmund Burke e Thomas Paine, no final do século XVIII, a propósito da Revolução Francesa de 1789 (Paine a favor, Burke contra). Se fosse só isso, o livro já valia a pena. Mas é mais do que isso. É uma crucial evocação da emergência da rivalidade civilizada entre direita (Burke) e esquerda (Paine) democráticas nas modernas democracias ocidentais.

O autor descreve correctamente o que separava Edmund Burke de Thomas Paine. Mas descreve também correctamente o que os unia: a defesa de um regime pluralista fundado na robusta mas amigável controvérsia entre propostas rivais. Esta rivalidade civilizada constitui o mistério das democracias ocidentais — oriundas de Atenas, Roma e Jerusalém.

É um mistério que as culturas políticas autocráticas e terceiro-mundistas — como as da Rússia, da China, ou do Islamismo — não conseguem compreender. E não é fácil compreender sem viver a experiência ocidental. Porque o binómio da “rivalidade civilizada” é de facto altamente improvável e assenta num gradual amadurecimento multissecular.

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Esta rivalidade civilizada está patente em dois outros livros recentemente traduzidos entre nós: A estranha morte da Europa: Imigração, Identidade, Religião, de Douglas Murray (Edições Desassossego/Saída de Emergência, 2018) e De Esquerda Agora e Sempre: Para além das políticas identitárias, de Mark Lilla (Tinta da China, 2018).

De certa forma, os dois autores convergem no diagnóstico sobre o principal problema actual das democracias ocidentais: a falta de confiança em si próprias e a balcanização produzida pelas chamadas “políticas identitárias” de pequenos grupos (fundados na raça, no género, no “trans-género” e por aí adiante). Mas divergem sobre a origem desta balcanização identitária.

Para o britânico Douglas Murray (situado ao centro-direita), a origem está na hostilidade das elites intelectuais contra a cultura e identidade ocidental e cristã. (Uma breve introdução ao argumento de Murray pode ser lida na sua entrevista a Carlos Marques de Almeida e João Pereira Coutinho na última edição da revista Nova Cidadania)

Para o norte-americano Mark Lilla (situado ao centro-esquerda), a origem está numa leitura colectivista do legado individualista de Reagan e Thatcher. Segundo Lilla, os democratas norte-americanos terão adoptado esse individualismo republicano e conservador numa versão colectivista: a dos interesses particulares de grupos particulares, onde o interesse geral é esquecido.

Tolos, Impostores e Incendiários: Pensadores da Nova Esquerda (Quetzal Editores, 2018) é um clássico do britânico (Sir) Roger Scruton sobre aquela parte da esquerda que não é democrática, mas que, talvez por isso mesmo, goza de grande popularidade entre vastos sectores de intelectuais semi-educados do Ocidente. Apesar do título provocatório, o livro critica seriamente autores como Sartre, Foucault, Althusser e Hobsbawm, entre outros.

Finalmente, chegamos à minha quinta proposta de livros para férias: as Memórias do francês Raymond Aron (Edições Guerra & Paz, 2018). Trata-se de uma grande obra de um grande autor, publicada entre nós 35 anos (!) após a publicação original, em1983, poucos meses antes da morte do autor.

Não seria possível resumir aqui a importância e o alcance da obra de Raymond Aron (1905-1983). Mas este livro de memórias (que é também uma história política e intelectual do século XX) é uma excelente introdução à obra de um dos grandes pensadores do século passado — que sempre defendeu, contra ventos e marés, a “rivalidade civilizada” que sustenta a democracia liberal.

“A democracia é a obra comum de partidos rivais”, gostava de dizer Raymond Aron, perante a incompreensão tribal dos sectarismos da esquerda e da direita não democráticas.