Entramos em 2023 com menos 74 Médicos de Família que no mês anterior e ultrapassando 1,5 milhões de utentes sem Médico de Família. Em fatal incumprimento da Constituição que obriga os Governos a garantirem o acesso à Saúde. Porque o Médico de Família é a pedra basilar no acesso à saúde. É ele que, sempre de porta aberta, na sua continuidade de cuidados, nos conhece e nos escuta, que tem capacidade de se aperceber precocemente e atempadamente de alterações no nosso estado de saúde, que nos sossega ou nos avisa, que zela pelo nosso bem-estar, passado, presente e futuro. Sem Médico de Família perdemos tudo isto. Perdemos o confidente, perdemos o aconselhamento, perdemos a prevenção, perdemos o diagnóstico e o tratamento atempados.

Perdemos também o acesso a meios complementares de diagnóstico comparticipados pelo SNS (que são um elemento essencial da atividade médica; de que me serve o recurso de ir a um Médico de Família Privado se depois não tenho dinheiro para fazer os exames de que ele precisa para o seu diagnóstico?) e perdemos o acesso à referenciação para consultas das outras especialidades no SNS porque ela é feita exclusivamente através do Médico de Família do SNS. Perdemos quem nos passe baixa quando estamos doentes….

Sem Médico de Família o acesso à Saúde está bloqueado. Resta-nos recorrer às urgências, entupindo-as, quando nos sentimos doentes, ou ao setor privado pagando, tudo, do nosso bolso.

Na ARSLVT já são mais de 1 000 000 com a agravante de estes utentes estarem concentrados em Unidades do modelo antigo onde quase não existem quase Médicos de Família o que as obriga a madrugadas para conseguirem uma vaga do dia de qualquer médico

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E o que nos veio dizer o Ministro da Saúde na sua entrevista de propaganda à SIC?

Que ia “criar” já em Janeiro 28 Centros de Saúde de Modelo B (como consta aliás no rodapé dos noticiários da SIC), que atenderiam 350 000 utentes. Ora isto é publicidade enganosa e a SIC devia ter melhor conhecimento dos assuntos. Porque o Senhor Ministro não vai criar nada. Vai simplesmente mudar o regime remuneratório dos profissionais da Saúde destas 28 USF, passando a pagar-lhes o dobro para fazerem o mesmo, e sem lhes exigir uma melhor acessibilidade. Mas serão exatamente as mesmas 28 Unidades que já existiam, os mesmos profissionais, os mesmíssimos utentes e o mesmíssimo desempenho.

Portanto, por aqui não resolve nada no que se refere ao problema (verdadeiramente dramático) dos Utentes Sem Médico de Família.

Mas disse mais, que o recurso possível a Unidades de Saúde Familiares do Modelo C, modelo previsto na Reforma dos CSPs de 2007 do Prof. Correia de Campos (unidades privadas convencionadas com o SNS), sim, apesar do chumbo pela bancada do PS na aprovação do orçamento para 2023, mas só em último caso, de forma transitória e temporária, por pouco tempo, e só se forem do sector social ou de Cooperativas Médicas. Nunca por nunca de entidades com fins lucrativos. E, creio que o não disse, mas é assumido pela Administração, só com médico reformados (ou que estejam fora do SNS?), matando uma boa solução, prevista na Le de 2007, para os médicos que estão a pensar sair do SNS. E não se percebe como se pode fazer uma discriminação deste tipo.

Deixarei a falsa questão do lucro na saúde para um próximo artigo. Mas não posso deixar de assinalar a submissão do Ministro da Saúde ao “bulling” ideológico e corporativo da extrema esquerda; e que propositadamente não quis desfazer a confusão lançada pelo Bloco de Esquerda entre Sistema Privado de Saúde em regime livre e a presença de privados no SNS a trabalharem com uma Tabela Social. De que são exemplo aquilo que melhor funciona na Saúde. O sector convencionado: os Laboratórios de Análises Clínicas e os Centros de Diagnostico Radiológico e de Imagem privados, onde, por uma tabela muito baixa paga pelo Ministério da Saúde, os utentes fazem os seus exames com grande acessibilidade, qualidade e rapidez, sem nada terem que pagar.

O Ministro da Saúde foi Diretor Clínico do Hospital da Trindade que pertencia a uma IPSS (agora junta com o grupo a CUF). E sabe que esta, assim como as demais IPSS, praticava os preços de mercado quer nos seus preçários, quer nos salários que paga; as IPSS visam também o lucro. A diferença é como o distribuem.

Ser Médico de Família é, na sua essência milenar, a profissão mais liberal do Mundo. Assenta na relação direta do médico com o seu paciente. Facilitá-la (financiando por uma tabela social como acontece em Inglaterra, que falsamente dizemos imitar) devia ser a principal missão do Ministro da Saúde. Mas não, a posição do Ministro é a oposta e junta-se ao coro dos que querem é médicos funcionários e com relógio de ponto. E até nem se importa de lhes pagar o dobro (mais que o vencimento do primeiro-ministro) para fazerem o mesmo e que o Estado gaste milhões na construção de instalações faraónicas e em despesas inúteis.

Mas voltemos ao tema. O Ministro da Saúde sabe que não existe legislação sobre cooperativas de saúde, que teria que ser feita, e sabe mais: que dificilmente encontrará médicos com capacidade, ou dispostos a investirem o muito dinheiro necessário para criar e manter uma USF. Sobretudo num sistema em que cada cabeça um voto, onde não existe autoridade ou garantia de rumo e segurança no investimento.

As IPSS não têm conhecimento e capacidade para estruturarem verdadeiras unidades de cuidados de saúde primários. A Misericórdia de Lisboa tem uma pareceria com a ARSLVT mas num sentido de complementaridade à sua função social.

Por outro lado, a essência do Médico de Família assenta numa perspetiva de continuidade (fui médico de uma mesma lista de utentes por mais de 30 anos. Pessoas que comecei a acompanhar com 60 anos têm agora mais de 90. Crianças que acompanhei desde que nasceram, já são elas agora pais ou mães). Assim não faz qualquer sentido este aviso de que é uma solução temporária para durar apenas dois ou três anos porque isso não seria verdadeiramente “dar um Médico de Família”. E quem é que neste caso de horizonte limitado se dispõe a investir umas centenas de milhares de euros e a assumir encargos com pessoal?

Ou seja, na entrevista à SIC o Ministro da Saúde não apresentou qualquer solução que fosse real para diminuir o drama dos que não têm Médico de Família.

Mesmo a passagem agora de 28 USFs de A para B, não dá qualquer garantia de que não tenha sido apenas por oportunidade política, e não por assumir por inteiro a reforma de 2007 que depois dos dois primeiros anos, encalhou. Há 3 anos a Ministra da Saúde, em função deste relatório da IGAS (pedido pelo então Secretário de Estado Adjunto da Saúde, Fernando Araújo, que agora é o Diretor Executivo do SNS), anunciou que novos modelos Bs só depois de revisão do seu sistema remuneratório. O último grupo de trabalho nomeado para o efeito terá entregue a sua proposta em Junho passado, mas ela não foi divulgada. Contudo, sob pressão política em outubro de 2021, 20 USFs A passaram a B . Lê-se no despacho determinou-se que o número de USF de modelo A a constituir no ano de 2021 seria de 20 e previu-se que, até 31 de dezembro de 2021, transitam do modelo A para o modelo B até 20 USF, não obstante não ter sido, ainda, revisto o modelo de pagamento pelo desempenho para as USF de modelo B, firme intenção do Governo, ainda não concretizada em virtude do contexto pandémico que assola o país desde março de 2020 ) e agora o Ministério, confrontado com o número de utentes sem médico, 30% das vagas a concurso desertas e urgências nos hospitais cheias, anunciou a passagem de mais 28 A a B. Mas sem apresentar o guião de um percurso fiável de acesso ao Modelo B para os novos especialistas. Estes persentem, e com fundamento, que os lugares que lhes serão destinados serão em UCPSs (modelo tradicional de centro de saúde) com más instalações, mal equipadas e cheias de utentes sem médico a que terão que dar resposta, e mal pagos (em Lisboa o vencimento irá quase todo para a renda da casa). E por isso continuarão a ficar de fora e a preferirem irem trabalhar de forma destruturada para “os privados”

Ou seja, com a passagem de USFs As para B, não há qualquer ganho na atribuição de médicos. E as opções apresentadas não funcionam.

Apenas palavras, palavras, palavras… e o número de utentes sem médico de família a subir até aos dois milhões.

A ideia que dá é que o ministro quer sim incentivar o modelo privado puro, que remunera as empresas de capital não médico, onde os Médicos de Família fazem consultas a metro, em hospitais e não em unidades inseridas na comunidade, e são a única alternativa que têm os utentes sem MF… E assim, não tem que pagar os honorários dos Médicos que estão fora do SNS e estão a ser pagos diretamente pelos utentes, nem tem que pagar os exames complementares dos utentes, pedidos por esses médicos, porque os não conseguem fazer através do SNS por estrarem na situação de “sem Médico de Família no SNS”

Porque, em vez de impor o modelo de corporativas, não aceita também o modelo de sociedades médicas, com acontece com os escritórios de advogados, inseridas na comunidade, contratualizadas por uma tabela social, e deixar os próprios médicos se organizarem como entenderem?

E porque prefere andar a contratar tarefeiros (todos os dias recebo anúncios de ofertas de empresas privadas de recrutamento) para taparem “buracos” no SNS, essencialmente passarem receitas e requisitarem exames aos “sem medico” em vez de permitir que os Médicos de Família Privados possam diretamente requisitar exames complementares de diagnóstico pelo SNS aos seus utentes? Pelo menos aos que não têm Médico de Família, e àqueles que optem por um Médico de Família no setor privado, deixando vago o seu lugar no SNS para quem não tem MF nem no SNS nem no privado e precisa?

Senhor Ministro da Saúde, peço-lhe que releia os dois primeiros parágrafos. Que releia o artigo 64 da Constituição (que o responsabiliza por garantir o acesso à Saúde de todos os portugueses e onde a palavra “público” não está), a Lei de Bases da Saúde, o Estatuto do SNS e o Estatuto da DE do SNS e que em conformidade, e é seu dever para com os portugueses, atue, já. Do que está à espera?