Separados, gosto de um bom rum e por vezes também da Coca-Cola com gelo e limão. Vê-los juntos num Cuba Libre, nem tanto. A meu ver, reduz-se o que há de melhor num e noutro: perde-se a consistência suave do rum e tapam-se os seus aromas mais finos com os grosseiros duma cola que, entretanto, perdeu o seu gás e frescura. Mas quando oiço alguém a dar vivas a “la Revolución!”, o meu primeiro impulso é pedir um Cuba Libre. Tudo é melhor que a revolução, até essa mistura. É verdade que o Cuba Libre é mais antigo que Fidel e remonta ao fim da Guerra Hispano-Americana que em 1898 – ano traumático para Espanha – resultou na perda espanhola não só de Cuba como de Porto Rico e das Filipinas, além de outros territórios menores. Mas por causa da revolução de Fidel sessenta anos depois, a família Bacardi mudou o negócio para o estrangeiro e a empresa Havana Club foi nacionalizada, estando a Coca-Cola e a Pepsi proibidas em Cuba. Por causa do embargo, também os Norte-Americanos estiveram durante décadas privados dos runs cubanos. Embora a Cuba Libre – a bebida – não seja para mim uma perda importante, é sempre lamentável uma limitação das possibilidades de escolha. Eu não aprecio, mas há quem goste; que lhes faça bom proveito!
No passado 25 de Abril, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa fez o tradicional discurso na Assembleia da República. Não lhe prestei logo atenção, mas ouvi boas críticas nos dias seguintes. Umas semanas depois ouvi um outro discurso com mais atenção, um discurso que me fez voltar ao de Marcelo e valorizá-lo. No dia 13 de Maio celebravam-se os 700 anos da fundação da Cidade do México. O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador convidou a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff e fez um discurso que narrou de modo marxista a História do México. Desvalorizou a crueldade azteca, mas valorizou a brutalidade espanhola, em que índios e pobres foram escravizados e explorados pelos brancos, Espanhóis, Norte-Americanos, nobres, burgueses, capitalistas, conservadores e liberais. Para López Obrador, a independência do México fez-se a pensar nos mais pobres e humilhados e a Revolução Mexicana de 1911 (sem referência aos Cristeros) foi para ele “um acto de justiça e a primeira revolução social do mundo”. Depois, recorda comovido os anos 1935-1983 como dourados, onde, mesmo que houvesse pobreza, pelo menos havia sonhos; e aponta como negro o período neoliberal e pessimista pós-1983, do qual ele resgatou o México em 2018 para um novo período de ânimo e esperança.
Este discurso não podia contrastar mais com o de Marcelo. Onde López Obrador promove divisões naquela velha lógica da luta de classes, Marcelo é alguém que procurou a inclusão e compreensão das várias facções que estiveram em confronto na nossa História recente, dando a cada uma razões de ser. A História não é tão simples como uma luta entre heróis e vilões, entre os certos e os errados; pelo contrário, a História é muitas vezes complexa e as pessoas que estiveram de um lado e do outro tiveram bons argumentos para terem estado onde estiveram ou ainda estão. É por isto que o discurso de Marcelo foi extraordinário: deu finalmente sentido à história de cada Português, sem excluir ninguém. Portugal há só um, mas não há apenas uma forma de se ser português. Ou nas suas palavras, “houve, há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que amamos e de que nos orgulhamos para além dos seus claros e escuros também porque é nosso.”
O marxismo de López Obrador, mesmo que mais simbólico e no plano cultural que Gramsci idealizou, não deixa de ser revolucionário e faz a luta na mente das pessoas que não deixam de ser postas em confronto, umas contra as outras. A mentalidade passa a ser de luta, a tal luta de classes entre explorados e exploradores. Foi assim na Revolução Sexual dos anos 60, ou no Maio de 68 em França, ou até nos dez anos de Revolução Cultural Chinesa (1966-76), que sob o slogan “aprender a revolução fazendo a revolução” destruiu não só os símbolos da tradição mas purgou, torturou e matou multidões.
Era precisamente durante aquele Maio de 68 que estava em Paris o jovem Roger Scruton (1944-2020), filósofo inglês que partiu no início do ano passado e um dos expoentes do pensamento político e estético no último século. Em Como ser um Conservador (Guerra e Paz, 2018), Scruton explica como o choque desta revolução cultural o leva a questionar as coisas que queria conservar e que os revolucionários não valorizavam na sua política de terra queimada: “O Maio de 68 levou-me a compreender o que valorizo nos costumes, nas instituições e na cultura da Europa. (…) Para meu espanto, os soixante-huitards estavam ocupados a reciclar a velha promessa marxista de uma liberdade radical, que chegará quando a propriedade privada e o Estado de direito «burguês» forem abolidos. (…) A liberdade real, mas relativa, tem de ser destruída em nome da sua sombra ilusória, mas absoluta. (…) A lei, a ordem, a ciência e a verdade são meras máscaras da dominação burguesa, já não interessa o que se pensa, desde que se esteja do lado dos trabalhadores na «luta»” (págs. 19-20).
Sem sairmos do sítio, podemos recuar à mãe de todas as revoluções: aquela que começou em 1789 e chamamos de “Revolução Francesa”. Mas terá começado realmente em 1789? De facto, a fortaleza da Bastilha foi tomada a 14 de Julho desse ano, mas o caldo cultural já existia, tanto por causa das ideias iluministas como por culpa dum generalizado imobilismo do regime de Versailles e consequente desfasamento da realidade social e económica em França. O último príncipe de Lampedusa quase teve razão ao escrever no seu Il Gattopardo que “tudo tem de mudar para que tudo fique na mesma”. Talvez não tudo, mas alguma coisa, aquilo que for preciso, aos poucos e sem viragens bruscas mas sempre recusando o imobilismo. Porque, como notava Edmund Burke (1729-1797), um Estado sem meios de alguma mudança é um Estado sem meios de conservação. Duma revolução, são culpados os revolucionários como também os imobilistas da situação que, por falta de reformas, tornaram a revolução próximo do inevitável. Não é por acaso que Burke se refere à Revolução Francesa como “a Revolução em França” quando escreve as suas Reflexões. De facto, partindo da análise em 1790, as suas reflexões são válidas para outras revoluções também. Na Introdução à edição da F. C. Gulbenkian (2015) das Reflexões sobre a Revolução em França de Edmund Burke, a Sra. Professora Ivone Moreira escreve que “Burke caracteriza a Revolução em França como a primeira revolução intelectual, concebida e desenhada teoricamente e levada a cabo com a arrogância e presunção de quem não nutre qualquer tipo de apreço pelo que gerações anteriores construíram” (págs. 35-36). Três anos antes de Luís XVI ter sido decapitado, já Burke antecipava “que o sofrimento de reis é um repasto delicioso para certo tipo de paladares” (pág. 131) e também a violência e instabilidade que iria haver.
Como se viu depois, a Revolução Francesa passou por várias fases pelas quais outras revoluções passaram também: uma fase moderada, uma fase radical e de terror, uma fase conservadora e eventualmente reaccionária, e uma fase de síntese – no caso francês, liderada por Napoleão. Estas fases não acontecem necessariamente por esta ordem, nem todas as facções têm de passar pelo controlo do poder, mas todos estes factores estão em jogo em qualquer revolução. Por isso, as revoluções mudam de mãos e de donos com muita facilidade. Independentemente dos valores que cada revolução quer promover ou acaba por promover no regime que se lhe segue, proponho que olhemos por um momento apenas para as consequências gravíssimas de uma revolução. Quem começa uma revolução, nunca sabe como é que ela acaba. E pelo caminho poderá haver destruição, prisões, mortes, ocupações, fugas para o exílio, crise económica e social, instabilidade política…
Há revoluções mais daninhas que outras, sobretudo se olharmos para os resultados. O que é incontroverso é que as revoluções são sempre experiências dolorosas para muitos. Uma reforma, uma mudança no tempo certo, um ajustamento dentro do Estado de Direito, é sempre preferível a uma revolução. Podemos contrastar os excessos do PREC à relativa tranquilidade da transição espanhola para a democracia. Não teria sido preferível que os líderes do Estado Novo tivessem preparado atempadamente, como se fez aqui ao lado, uma transição para a democracia em Portugal? Certamente se teriam poupado muitos problemas que a revolução trouxe, desde as ocupações no Sul à descolonização apressada, ou desde a violência política de rua à grave crise económica. Em Espanha, a transição foi um sucesso até 2004, quando chegou à Moncloa o primeiro-ministro José Luís R. Zapatero e começou a mexer na lei da memória histórica, reabrindo desta forma no povo espanhol uma ferida quase sarada. Esse filão continua a ser explorado hoje.
Nos últimos 200 anos, tivemos em Portugal várias revoluções: a liberal de 1820 que culminou na independência do Brasil e na Guerra Civil de 1832-34, a Revolução Republicana de 1910 precedida do regicídio e que nos encaminhou para La Lys e outras carnificinas da Grande Guerra, a de 28 de Maio de 1926 que abriu caminho ao Estado Novo, e a do 25 de Abril de 1974 que depois se acabou e coseu com as linhas de 25 de Novembro de 1975. E mesmo que essas revoluções tenham trazido progressos – e umas foram melhores que outras – fizeram-no a custo de quê? Fez-se, entre outras coisas, de guerra civil que virou irmãos contra irmãos, de perda de territórios, de perseguições à Igreja e às associações, de limitação das liberdades individuais, de ocupações de terras, de pobreza e crises económicas, de racionamento, de recolher obrigatório, de terror… por todas estas coisas passámos enquanto povo. No entanto, vem sempre alguém com a mania que é mais puro, que desta vez é que é, e por isso sugere uma nova revolução – seja ela física ou metafórica. Como as revoluções são o pior que nos pode acontecer e há sempre alguém disposto a oferecer-nos mais uma, a única defesa possível é o regime ter a coragem de se ir antecipando, reformando e adaptando a sua resposta às necessidades da população, sempre preservando o Estado de Direito. Em alternativa, a rigidez do regime e o voluntarismo dos revolucionários tornarão inevitável uma revolução que virá e fará tabula rasa de tudo o que existe: tanto do mau como do bom. Dizia Montesquieu que o governo despótico consiste em, quando se quer fruta, cortar uma árvore e apanhá-la. Esse elemento de barbárie está presente em cada revolução.
Por fim, resta-me dizer que as reformas não devem ser feitas a pensar tanto nos revolucionários e nas suas reinvidicações, mas sobretudo naqueles que se sentem excluídos da sociedade e nos factores que os levam a, em desespero, ponderar o voto nos extremos. Terá sido a pensar neles que, quem sabe tomando um Cuba Libre, Marcelo escreveu o seu discurso.