Ricardo Salgado sofre de Alzheimer. O testemunho da mulher do banqueiro, que revela em tribunal que o marido se perde dentro da própria casa, não deixa dúvidas sobre a gravidade da doença do patriarca dos Espírito Santo. Parece que também já chegou a sair à rua de pijama. O que, convenhamos, não é assim tão chato. O próprio não se ralará de ser visto nesses preparos, ele que nunca se mostrou incomodado por deixar tanta gente em cuecas. De qualquer forma, é indiscutível de que se trata de uma drama para a família e, acima de tudo, de uma tragédia para Portugal.
É que, infelizmente, agora o país nunca saberá o segredo, que Salgado levará para o jazigo, de como adquiriu os serviços do Primeiro-Ministro José Sócrates. Como conseguiu domar a personalidade irascível, egocêntrica e mitómana de Sócrates, empregando-o como seu fiel faz-tudo no Governo? Por melhores que sejam os alfaiates de Savile Row onde Salgado mandava fazer os fatos, é preciso muito talento para enfiar e manter um beirão assanhado no bolso sem que ninguém dê por isso.
É esta a tese das juízas do Tribunal da Relação, que afirmam que a Instrução de Sócrates foi feita com os pés – depois da licenciatura, já é a segunda. Segundo a contabilidade apresentada no acórdão que pôs fim aos delírios jurídicos do juiz Ivo Rosa (e às fantasias de alguns devotos do mártir Pinto de Sousa), Ricardo Salgado terá remunerado José Sócrates com a quantia de 26 milhões, 119 mil e 74 euros e 45 cêntimos – quer dizer, na realidade, pagou 29 milhões de euros, mas cerca de 2,8 milhões foram registados como “perdas”. O que significa que algum intermediário maroto meteu a mão nos subornos de Sócrates. Incrível, já não se pode confiar em ninguém.
Mas o dinheiro não explica tudo. Ricardo Salgado domesticou o animal feroz com recurso a um truque qualquer e agora já não se recorda de qual terá sido. Mulheres? Sócrates é apreciador de um certo tipo de senhoras. Acesso à mansão na Comporta? Como bom arrivista, Sócrates sempre sonhou frequentar a classe alta. Um segredo com que o chantageava? Improvável, Sócrates não tem vergonha de nada. Uns biscoitos especiais? Hipnotismo? Sequestro de ente querido? Com amargura, reconheço que nunca saberemos. Ó, maldição! De que serve ser o dono disto tudo se não nos lembramos onde está a chave disto tudo?
Apesar da importância que lhe damos, justificada por ter sido o (até agora) único Primeiro-Ministro corrupto, José Sócrates é uma figura secundária da história de Ricardo Salgado. A verdadeira saga é a queda do Grupo Espírito Santo, que nem a compra de um PM, de um Ministro da Economia, de serviçais avulsos no governo, no jornalismo, nos partidos e na administração de empresas, conseguiu evitar. Ricardo Salgado parece um presidente de clube que, na iminência do desastre, corrompe árbitros, suborna adversários e contrata os jogadores mais batoteiros da história do futebol, mas mesmo assim desce de divisão.
Nesse sentido, Sócrates era apenas um dos peões de Salgado, ao nível de Zeinal Bava ou Henrique Granadeiro. Um peão até barato, para o jeito que deu. Um peão mais mordaz e briguento que o habitual, mas um peão ainda assim. Só que é um peão que foi também Chefe de Governo de 2005, quando alcançou a primeira maioria absoluta da história do PS, a 2011, quando chamou um trio de instituições estrangeiras para resgatar o país da bancarrota até onde o tinha conduzido. Daí o interesse na decisão do Tribunal da Relação.
Que nos mostra alguém muito desorganizado com as contas. São vários os canais por onde chega o dinheiro, sem aparente controlo. Não há método. É tudo uma grande balbúrdia. Tanto pode ser uma factura que o amigo Santos Silva liquida, como um envelope que outro tipo entrega, ou um levantamento de multibanco efectuado pelo motorista. Falta sistematização, falta eficiência. Confesso que esperava mais do homem que inventou o Simplex.
Onde Sócrates não desilude é na combatividade. É admirável o empenho fogoso ao fim destes anos todos. A Operação Marquês já dura há tanto tempo que, por serviços prestados ao país, já merecia ter sido agraciada com o título de Operação Duque. E, passada uma década, Sócrates debita petas com a mesma veemência colérica com que o fazia em 2014.
Em 2011, depois de perder as eleições, José Sócrates podia ter desaparecido. Pegava nos milhões (pelo menos 34, diz a acusação) e ia viver para um paraíso tropical sem acordo de extradição. Nunca mais se ouvia falar nele. Mas Sócrates queria continuar a ser admirado, queria ser filósofo e depois Presidente. A vaidade sobrepôs-se à ganância. Isso foi fatal.
E agora é vê-lo ali, na ladeira do apartamento que um primo recebeu de um angolano, nos arrabaldes da Ericeira, a suar do bigode enquanto discute com um repórter insolente com idade para ser seu filho. Ele que, com um esgar acintoso, punha em sentido os jornalistas mais conceituados do país. E este ex-Primeiro-Ministro de Portugal continua a afirmar que é normalíssimo viver de somas milionárias que um amigo lhe passava em esquemas secretos, de contas na Suíça onde Ricardo Salgado depositara dinheiro a partir de um saco azul. É, de facto, uma personagem implausível. Para alguém que se deixou comprar com tanta facilidade, José Sócrates é impagável.