A socióloga Cristina Roldão prossegue a sua campanha contra os manuais escolares. Cai desta vez sob a sua alçada o manual Rumos 5, das Edições ASA/Leya, destinado ao 5º ano de História e Geografia de Portugal. A socióloga sente-se particularmente chocada com o facto de, nesse manual, se afirmar que, por altura dos Descobrimentos, viviam “povos muito atrasados” na África Negra e no Brasil e que “o estabelecimento de feitorias na costa de África foi facilitado pela fraqueza ou medo dos povos locais”. E, indignada, pergunta: “Como é possível que narrativas como esta possam continuar a circular impunemente nos manuais escolares em 2023?”.

Ao contrário do que pode pensar-se, o principal destinatário dessa pergunta de Cristina Roldão e de toda a mensagem deste e de outros artigos seus não é o público leitor em geral, não são os pais e encarregados de educação, não são os/as autores/as dos manuais que tem criticado, nem sequer as editoras que os publicam. O verdadeiro destinatário, aquele que realmente conta e sobre o qual Cristina Roldão e outros woke exercem, há anos, uma forte pressão é o Ministério da Educação e os seus principais responsáveis. Em vez de ser o livre arbítrio dos professores a seleccionar os manuais, os woke querem que, para lá de fazer os programas, o Estado intervenha, à maneira estalinista ou salazarista, nos conteúdos dos textos leccionados, de forma a que esses textos reproduzam a sua visão das coisas.

Aliás, a socióloga explicita-o de forma clara na parte final deste seu artigo quando escreve que “em última análise, a responsabilidade é do Ministério da Educação, seja pelo seu papel na regulação dos manuais, seja por ser a entidade responsável pela escola pública e o que nela se passa.” Infelizmente, escreve Roldão, “o ME tem optado por uma abordagem passiva deixando o assunto na mão invisível do mercado.” E, para o estimular a agir, para facilitar e lubrificar a desejada intervenção estatal sobre a liberdade de propor narrativas e explicações históricas, Cristina Roldão deita, como sempre, mão ao supremo argumento do “racismo”, o “Abre-te, Sésamo!” dos activistas (e dos políticos em apuros): “Onde estão as acções de sanção do racismo nos manuais?” — Pergunta ela, exigindo castigos. — “Ou será que dizer que na África Negra e no Brasil viviam povos muito atrasados não é uma afirmação racista?”.

Não, Cristina Roldão, de facto não o é. Será uma afirmação antropologicamente contestável, certamente filha de visões evolucionistas já ultrapassadas, mas racista não é. Em parte alguma do manual se diz ou se sugere que os africanos ou os índios do Brasil fossem inferiores aos brancos, ou menos inteligentes do que eles, ou incapazes e de alguma maneira estruturalmente limitados. O que se diz é que estavam atrasados.

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Isso, aliás, não é específico de África ou do Brasil e respectivos naturais, ou algo que incida apenas sobre eles. O mundo nómada foi e continua a ser muitas vezes apresentado como atrasado relativamente ao mundo sedentário. Pense-se na relação entre os Mongóis e a China. Os Mongóis são descritos como povos que viviam em tendas de feltro e desconheciam a agricultura, a edificação permanente e monumental, a escrita — o primeiro texto escrito em Mongol, A História Secreta dos Mongóis, data de meados do século XIII e é posterior à morte de Gengis Khan —, e muitas outras coisas que o mundo sedentário valorizava. Há algo de injusto e de enganador, aqui, pois os nómadas tinham uma civilização construída com base em saberes muito elaborados sobre ecologia, pastorícia, veterinária, arte da guerra, organização política muito particular — as confederações imperiais — e por aí fora. Tinham criações musicais e práticas culinárias muito próprias e haviam elevado a liberdade e a autonomia política a um alto patamar. Pode ser injusto ignorá-lo ou desvalorizá-lo, repito, mas não é racista.

E algo de semelhante se poderá dizer quanto ao passado da África subsariana e das suas realizações, especificidades políticas, tecnológicas, culturais. Será injusto deixá-las no tinteiro, mas não é racista. E quanto a serem deixadas no tinteiro, o problema, no âmbito que aqui interessa, isto é, o 5º ano do ensino básico, é o seguinte: serão essas especificidades africanas (ou nómadas) entendíveis e valorizáveis por crianças de nove anos? Eu suponho que não e acho, por isso, compreensível — ainda que não aplauda — que o manual Rumos 5 apresente as coisas de um modo unilinear e faça contrastar, em termos de avanço e atraso, as tecnologias portuguesas — a caravela, o sextante, a arma de fogo, etc. — e as africanas (é incontestável que os europeus dispunham de tecnologias de produção e de transporte mais eficazes do que as africanas).

Acredito que esse acentuar do binómio avanço/atraso não implique qualquer má-vontade relativamente a África e ao Brasil (ou à Mongólia) e seja apenas um vestígio, uma sobrevivência, de uma concepção evolucionista segundo a qual as sociedades humanas — todas elas — avançariam por estádios obrigatórios de desenvolvimento. Sabemos, claro, que ao contrário do que propunha essa antigamente muito forte corrente da antropologia, não há apenas um caminho nem etapas obrigatórias, e que as sociedades fazem opções que as impelem num rumo ou noutro. Os rumos que a África subsariana seguiu foram diferentes dos percorridos pelos europeus, esses rumos e as condições circundantes, incluindo as geográficas, fizeram com que os avanços e os ritmos fossem diferentes dos concebidos pelos evolucionistas ocidentais, aos olhos dos quais, nessa fase, esses povos pareciam ter-se atrasado no caminho, sendo, por isso, assim etiquetados.

Admito que os autores desse manual e os professores que o escolheram também o saibam, mas que tenham sentido necessidade de simplificar para ajustar a mensagem ao nível etário dos seus alunos, e que pensem que, adiante, à medida que crescerem, haverá tempo para os agora muito jovens estudantes irem elaborando o conhecimento, valorizando outros aspectos da história das sociedades humanas e corrigindo o tiro. É assim que se ensina (e que se aprende) História, grão a grão, passo a passo, em sucessivas camadas, do mais simples e esquemático para o mais detalhado e complexo.

Cristina Roldão parece ignorar tudo isso. Aliás, o seu irrealismo não deixa de me espantar. Neste seu último artigo a socióloga critica e lamenta o facto de o manual Rumos 5 explicar a existência de mulatos em termos de “miscigenação” ou de “união” de “pessoas de raça branca com as de raça negra”, assim “ocultando” — acusa — “o que na realidade eram estupros ou, no mínimo, relações (sexuais) estabelecidas num quadro de dominação brutal.” Ora, não há aqui qualquer ocultação, apenas bom senso e adequação à idade dos alunos por parte dos autores do manual. O que mais importa sublinhar, porém, é que Cristina Roldão desejaria que os manuais escolares destinados a crianças de nove ou dez anos não “ocultassem” esses aspectos e introduzissem a violação como um dos conceitos a aprender.

Não tenho dúvidas de que o manual que Cristina Roldão gostaria de ver escrito e aprovado para leccionar crianças e jovens adolescentes seria um catálogo de horrores seleccionados. Ficariam de fora, claro está, os horrores sofridos por brancos às mãos de negros — e muitos há. Ao contrário, porém, com brancos como algozes e negros como vítimas, tudo se explicitaria: massacres, torturas, violações, execuções, sofrimentos. Será isso que o nosso Ministério da Educação deseja que se transmita no ensino básico?