As primeiras audições da comissão parlamentar ao caso das gémeas não correram particularmente mal ao Presidente da República. O inquérito parlamentar cria sempre suspeição e ter o nome diariamente nas notícias relacionado com um tratamento de favor é do mais difícil que o chefe de Estado enfrentou ao longo dos dois mandatos. Mas podia ser pior. António Lacerda Sales disse que nunca falou com Marcelo Rebelo de Sousa, Daniela Martins, a mãe das gémeas, fez igual e ainda deixou um pedido de desculpas por ter invocado o nome presidencial em vão. Com argumentos de filigrana disse ainda que só se gabou do “pistolão” porque “o que diziam” no Hospital Santa Maria era que estava ali a “mando do Presidente”.
Marcelo Rebelo de Sousa saiu, até agora, incólume do ponto de vista legal. Quem o podia implicar até agora, protegeu-o. Prevê-se que a audição mais difícil que tenha que enfrentar seja a do coordenador da unidade de neuropediatria do Hospital de Santa Maria, António Levy Gomes. Mas é bem possível que, no fim de todo o processo, mesmo que chamuscado politicamente, o Presidente da República não esteja envolvido em nenhuma questão legal. E tampouco ética.
O Presidente da República optou sempre fazer um cordão sanitário entre o cargo e a família, mas uma coisa é firmar um cordão político, outra é cortar o cordão umbilical. Uma das teses que circulam na opinião pública e publicada sobre o caso é que Daniela Martins deve ser desculpada por qualquer erro, e até ilegalidades que possa ter cometido, porque fez o que podia para salvar as filhas. Uma espécie de disposição ad hoc e não escrita da Constituição em que mãe-é-mãe. Não é de estranhar, nem sequer criticável, que uma boa parte da população portuguesa — fora da elite guardiã da lisura republicana — pense assim.
No livro O Estrangeiro, de Albert Camus, a personagem é condenada à morte não por um assassinato, mas por não ter derramado uma única lágrima no funeral da mãe. Como se essa prova de desumanidade fosse mais grave que o próprio crime em si. Com as devidas diferenças, o tribunal popular não difere muito. O eleitorado é muito mais parecido com um tribunal de júri, ou com o racional da sentença ficcionada por Camus, do que com a formalidade da lei. Ora, Marcelo Rebelo de Sousa referiu-se ao filho como “doutor Nuno”, evitou-o no Natal e passou a imagem pública de que deixou cair o filho nesta história. E continua a fazê-lo de forma reiterada e deliberada. Passa a ideia, aliada a um aparente e inabalável sentido de Estado, que sacrificou a sua condição de pai pelo cargo que ocupa. O que é eticamente irrepreensível pode ser eleitoralmente incompreensível.
O grande objetivo desta fase final de mandato de Marcelo Rebelo de Sousa é a defesa do legado, a maneira como será lembrado pelo povo. A condenação legal é mais do que improvável, o impeachment constitucionalmente impossível, pelo que o maior objetivo político não seja mais do que — em palavras ao estilo de Marcelo — a memória futura do momento presente. O chefe de Estado — que passou os últimos oito anos a provar que não era o traquina endiabrado que o país conhecia, mas sim o Presidente dos afetos — não evitou que os portugueses vissem o Presidente-de-todos-os-portugueses a destratar um dos quais a quem devia mais cuidado, “o Dr. Nuno”. Pior: fê-lo em público.
Não é difícil de prever que um país exija, e bem, que o Presidente da República nunca interceda a favor de um familiar. Não será igualmente difícil de antecipar que o mesmo país exija que Marcelo, o pai, manifeste o mínimo de compaixão pelo filho, mesmo que seja o mais errático e mal comportado exemplar da sua descendência. Como diria Marcelo: filho de Presidente, não é Presidente. Mas é filho.
Estrategicamente a opção de Marcelo é também perigosa do ponto de vista do cálculo político. O facto de não ser solidário com o filho, desobriga Nuno Rebelo de Sousa de ser leal com o pai. Mais do que um Sales ou um Levy Gomes, ninguém poderá ser tão letal para o chefe de Estado nesta comissão de inquérito como um Rebelo de Sousa. No fim da comissão de inquérito, provavelmente nada acontecerá ao Presidente. Mas ninguém sabe o que sobrará da imagem pública de Marcelo.