Criticado, acossado, isolado e, em muitos casos, ridicularizado, Marcelo Rebelo de Sousa ensaiou esta semana uma nova modalidade olímpica. Definir o que é ou não tema de debate político e de escrutínio jornalístico. Depois de uma semana em que conseguiu o extraordinário feito de ter toda a gente, da esquerda à direita, dos adversários de sempre aos aliados mais próximos, a censurar as posições assumidas, o Presidente da República decidiu dizer ao Expresso o seguinte: “O momento do Presidente não é tema”. Importa por isso uma pequena-grande correção: o momento do Presidente é sempre tema; agora mais do que nunca. Ninguém, nem mesmo Marcelo, está acima do escrutínio.

Durante muitos anos, Marcelo Rebelo de Sousa gozou de vários fatores que o colocaram de alguma forma acima da discussão. O brilhantismo reconhecido pelos pares, a popularidade e empatia conseguidas junto dos portugueses (mérito próprio numa conjuntura que assim o exigia), o fascínio de uma grande parte da comunicação social, a cumplicidade do PS (Costa precisou dele e Marcelo de Costa) e o natural embaraço do partido de origem (Passos nunca gostou dele, Rio nunca soube jogar o jogo de Marcelo, Montenegro nunca o quis hostilizar abertamente, mesmo quando foi humilhado). Numa palavra: condescendência. Durante muitos anos, mereceu a condescendência de meio mundo e a genuína admiração da outra metade.

Porém, algures durante o caminho, inebriado, Marcelo, que nunca morreu de amores pelo escrutínio (enquanto Presidente da República contam-se pelos dedos das mãos as entrevistas de fundo que deu, para lá de declarações torrenciais, improvisadas e criativas em on e em off the record), convenceu-se de que não tinha de prestar contas. Que nunca erra. Que todos os outros o percebem mal, quando o percebem de todo. Para quem quis tanto cortar com o legado de Aníbal Cavaco Silva, Marcelo caiu no maior pecado do seu antecessor: nunca se engana e raramente tem dúvidas. Suprema ironia.

Seja como for, esta pulsão para a desresponsabilização e fuga em frente nem sequer é de agora. No final de 2022, quando apareceu em público a desvalorizar as queixas recebidas pela comissão independente que investigava os abusos sexuais cometidos no por elementos da Igreja Católica (“Haver 400 casos não me parece particularmente elevado porque noutros países com horizontes [temporais de investigação] mais pequenos houve milhares de casos”), demorou dois dias a pedir desculpa. Mas não o fez de qualquer maneira. “A minha intenção não foi ofender. Se porventura uma vítima que seja está ofendida peço desculpa por isso porque não era esse o meu objetivo.” Repare-se: a culpa não foi de Marcelo; foi de quem, tendo percebido mal as palavras de Marcelo, ficou ofendido. Foi o momento mais baixo do Presidente da República. Porém, antes, durante e depois desse momento, Marcelo nunca deixou de nivelar por baixo. O padrão foi sempre esse.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas até para os padrões a que Marcelo nos habituou, o jantar com os correspondentes estrangeiros ultrapassou todos os limites. As declarações sobre o corte de relações com o filho foram despropositadas; as declarações sobre Luís Montenegro e António Costa foram lamentáveis; as declarações sobre a Procuradora-Geral da República foram perigosíssimas; e as declarações sobre as antigas colónias foram irresponsáveis — não porque a discussão não deva existir; mas porque deve existir nos meios e nos termos próprios.

No primeiro caso, Marcelo não cuidou da imagem infeliz (e conveniente) que deixou sobre o seu filho; no segundo, não retirou uma vírgula ao que dissera, ignorando, por exemplo, que pode ter ofendido os visados e uma parte generosa do país; no terceiro, tentou desmentir o indesmentível fazendo de todos (jornalistas incluídos) parvos; e, por fim, não só não recuou como reiterou tudo o que dissera sobre o dever de reparação às antigas colónias – ignorando as evidentes dificuldades diplomáticas que criou e que está a criar ao Governo em funções, com quem se esqueceu (sabe-se lá porquê) de concertar posições (era o mínimo).

O Presidente da República conseguiu uma espécie de bingo no campeonato particular do desastre político e, nem por isso, mostrou um pingo de arrependimento. Pior: quando muitos duvidam (legitimamente) da sua capacidade de decisão, Marcelo disse que não era tema. Ponto final, parágrafo. Ninguém tem nada que ver com os números que Marcelo faz. “O momento do Presidente não é tema”, sentenciou. Marcelo não podia estar mais errado.

Não basta dizer que não se sente “caquético” e que até se sente mais “jovem junto dos jovens”. Estamos noutro nível de exigência. O país precisa de outra exigência. Há muito tempo que clama por outro tipo de exigência. Acabaram as selfies e os beijinhos. Estamos todos mais adultos, obrigado. Ninguém precisa de ser infantilizado. Marcelo, que muito provavelmente terá de decidir se dissolve ou não outra vez a Assembleia da República, tem de decidir se se comporta como o adulto na sala ou o adolescente que nunca conseguiu deixar de ser em muitos momentos. Demasiados momentos.