Foi há uma semana, mas a imagem não me sai da cabeça: o Presidente da República, sozinho, ou acompanhado apenas pela ajudante de campo (provavelmente, a isso obrigada por lei), ao fundo do plano dos canais de notícias, a tentar repor as pedras da calçada de um passeio de Belém com a ponta do sapato.
Não sei que vos diga. No café, à hora de almoço, a televisão transmitia aquilo em modo mudo e, em volta, todas as mesas entretidas na conversa e respectivas refeições. Procurei apoio ocular em vão. Nem um cúmplice. Nem uma testemunha mais com quem dividir a perplexidade. Alguém que dissesse: sim, estás a ver bem, amigo – e também eu não compreendo: um chefe de Estado, absolutamente consciente de estar a ser filmado, a tentar resolver com os pés um problema que não tiraria o sono ao presidente da junta, depois de, instantes antes, ter deixado o país suspenso sobre se iria demitir o Governo ou não.
O caso torna-se mais inquietante pela proximidade de um outro, ocorrido dias antes, do outro lado do mundo: a estrela de cinema e antigo governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, de charuto em punho e rodeado de amigos equipados com todo o equipamento necessário, câmara de filmar incluída, reparou um buraco da rua onde vive, enquanto debitava desabafos a quem passava sobre a necessidade de termos de ser “nós” a resolver os problemas, já que “eles” não fazem nada. Alguns media portugueses transmitiram a notícia com a candura comovente de “curiosidade do dia”, como se Arnie fosse mesmo e só o actor de cinema e não o actor político.
Mas o que Marcelo nos mostrou foi que cada país tem o Schwarzenegger que merece. No auge da crise Galamba, que envolve acusações de roubo e violência no ministério das Infraestruturas, suspeitas de recurso ilegal aos serviços de informação da República, versões contraditórias de meio Governo, uma comissão parlamentar de inquérito e o clina de tensão com um PM que não lhe quis fazer a vontade por razões que a razão ainda desconhece, convocou os jornalistas para uma conversa nos jardins do palácio, depois desconvocou, depois veio à rua passear como se nada fosse, deixou-se cercar pelos jornalistas, seguiu em frente para uma sessão de selfies e, antes da atravessar a estrada para o café onde, há sete anos, montou a sede de campanha talvez para se ir logo habituando às rotinas do bairro, parou para retocar, longamente, a calçada.
Não há, em Portugal, político mais consciente das câmaras. Marcelo sabia que estava a ser filmado, o que não é o mesmo que dizer que soubesse o que estava a fazer. Digo-o com franqueza, caro leitor, tentando evitar o cinismo. As câmaras zoomaram necessariamente o acontecimento e, de repente, Portugal era aquilo: um buraco que o sapato preto do Presidente tentava tapar com uma pedra manifestamente insuficiente para o diâmetro do problema.
Estaria a pensar em ficar ali 15 ou 30 minutos até repor todas as pedras? Mandar a ajudante de campo ir, num instantinho, comprar um martelo calceteiro algures enquanto ele ficava ali, sem segurança, a adiantar serviço? E acharia mesmo que é função dele reparar buracos na calçada? E que seria capaz de o fazer com competência, já agora?
São as pequenas coisas, caro leitor. São sempre as pequenas coisas que revelam as maiores verdades. A questão aqui é perceber qual a verdade a retirar do buraco na esquina de Belém: a de que temos um Presidente que não perde a oportunidade de construir uma imagem de frugalidade, solidão e sacrifício? Ou um que, honesta e convictamente, se sente impelido a correr para tentar sarar toda e qualquer mazela do país? Mesmo que meio delirante, mesmo do que não faz qualquer sentido, mesmo do que não lhe cabe nem pode nem deve caber?
Não creio que possamos chegar a uma conclusão objectiva. Depende, como é típico das verdades mais fascinantes, daquilo em que cada um acredita. Dom Manuel não terá retocado buracos ali mais à frente, quando foi inspeccionar a construção dos Jerónimos. Mas também é verdade que, então, ainda não tinha de lidar com o problema dos índices de popularidade nem a chatice das câmaras de televisão.