No mês de Outubro do ano passado, Martin Wolf veio a Lisboa apresentar o seu último livro “A Crise do Capitalismo Democrático”, numa Conferência realizada no Auditório da Fundação Champalimaud, que fechava assim um ciclo de Conferências mensais que se havia iniciado em Maio desse ano com o objectivo de chamar a atenção dos Portugueses para o que se estava a passar no mundo. Um pequeno grupo de cidadãos, preocupado com a indiferença com que em Portugal se olhava para os sinais alarmantes das alterações políticas, económicas e militares que ameaçavam tomar conta do Globo, pensou que faria sentido apelar à opinião esclarecida de vozes reconhecidas internacionalmente, para falar sobre o significado das forças que fracturavam o quadro da vida global e por inerência, o nosso também.
Nessa altura, os meios de comunicação em Portugal estavam essencialmente entretidos com os redemoinhos fátuos suscitados pelas desventuras mais ou menos cómicas dos políticos domésticos e a atenção dada aos furacões externos era praticamente nula. Hoje, temos um panorama informativo com dezenas de comentadores que preenchem os espaços de informação pública com opiniões muito próprias sobre o que se está a passar na geopolítica.
O Ciclo de Conferências que Martin Wolf fechou, tinha começado com o tema da guerra na Ucrânia, beneficiando das explicações de Giuliano da Empoli – reconhecido autor de O Mago do Kremlin e de Os Engenheiros do Caos – sobre a natureza do regime russo, a que chamava de Disneylândia dos gangsters, e de Bruno Maçães. Depois, em Junho, fomos à procura de uma explicação sobre o impacto da Inteligência artificial numa das facetas mais sublimes do espírito humano, que é a da criação artística. Arlindo Oliveira, Massimo Sterpi e José de Guimarães explicaram o que era da Ciência, do Direito e da Arte, nesta nova fronteira digital. Em Julho, Pascal Lamy, um dos obreiros históricos do projecto europeu, falou dos riscos de implosão de uma Europa que, durante tantas décadas, nos deu a paz e a prosperidade. Em Setembro, o tema foi o futuro da globalização, com Bill Emmott, um icónico editor do The Economist e Philippe Riès, autor, jornalista e antigo responsável da AFP. Ouvimos, então, que a globalização ainda resiste e só acabará na eventualidade de guerra entre os EUA e a China.
Em Outubro, veio então Martin Wolf, um dos mais conceituados jornalistas internacionais, especialista em questões económicas e do mundo da finança. Alarmado com o que estava a acontecer ao modelo político e social que tinha propulsado o mundo para a paz e prosperidade até ao Séc. XXI, Wolf decidiu partilhar a sua análise sobre os riscos que corríamos, a sua origem e razão de ser, e quais os remédios a utilizar. Martin Wolf tinha não só a competência técnica e intelectual para compreender o que se estava a passar, como também um incentivo pessoal determinante: os seus pais tinham sobrevivido ao holocausto nazi mas praticamente toda a sua família havia sido assassinada. Episódio monstruoso da História em que, em nome da ideologia (nascida da crise económica), da ideia de grandeza nacional e da superioridade da raça, foram perpetradas inimagináveis atrocidades.
Martin Wolf conhece bem os mecanismos das crises económicas e sociais que se sucederam à Primeira Guerra Mundial e que levaram o povo alemão a conferir poderes ilimitados, num quadro de obediência religiosa, a uma organização de terroristas liderada por loucos assassinos. Por seu lado, o povo russo conhecia também uma sorte equivalente, embora com colorações supostamente concorrentes ou opostas.
Martin Wolf relembrou detalhadamente os resultados extraordinários obtidos no Séc. XX pelo casamento entre o capitalismo e a democracia, que conseguiu elevar a humanidade a um nível de riqueza nunca atingido. Analisou depois a disfunção recente nos mecanismos económicos e sociais que fragilizaram o tecido das sociedades – em especial das mais evoluídas – e abriram caminho ao canto de sereia de loucos que oferecem soluções mágicas para os problemas reais. Soluções que, afinal, são assentes na ignorância, na incompreensão da realidade e na crença inebriante de um passado imaginário. Um modelo cujo sucesso desemboca na abdicação dos direitos das pessoas que deixam de ter valor como tal para passarem a ser meros instrumentos ao serviço do líder.
Que a crise de que falava Martin Wolf está aí, não se pode ignorar. Vemos à nossa volta crises que fazem colapsar o funcionamento político das democracias capitalistas. Por toda a Europa, o exercício da democracia não origina agora Governos estáveis, capazes de enfrentar problemas e de reformar o que é preciso. Estamos, antes, à mercê de populismos de esquerda e de direita, que se abraçam para sufocar as soluções necessárias. Tal como fazem, em França, Jean-Luc Mélenchon e Marine Le Pen, também em Portugal Pedro Nuno Santos e André Ventura assumem como missão provar que capitalismo em democracia não funciona.
Chamar a atenção para a iminência destes problemas, foi o que levou Pedro Rebelo de Sousa, Dennis Redmont e o signatário a realizar esse Ciclo de Conferências, que foi intitulado de Novas Conferências do Casino num apelo à memória do grito lançado nos finais do Séc. XIX por um grupo de cidadãos preocupados com o que aguardava Portugal, num mundo onde se anunciavam alterações radicais. Claro que hoje os tempos são outros. Em 1871, Portugal era a sombra de um Império à procura de espaço num mundo em que os impérios passaram a ser movidos pelo poder da indústria. Neste início de milénio, as placas tectónicas estão a ajustar-se ao reaparecimento do Império Chinês, num mundo movido agora pelo poder digital. A única esperança hoje de um lugar ao sol das velhas potências europeias, reside na sua capacidade de entendimento no seio de uma força federada, que possa prosperar num capitalismo em democracia. Objectivo que no actual quadro, parece cada vez mais difícil de atingir.
Sabemos o que aconteceu a seguir a 1871, mas o que irá acontecer agora é naturalmente uma incógnita.
Mas vale a pena pensar sobre isso e tentar contribuir para um futuro melhor.