Foi no sábado, quando regressava do Algarve, que ouvi no rádio a proposta do presidente da Câmara de Lisboa sobre a redução do preço dos passes dos transportes públicos na Área Metropolitana de Lisboa (AML). Estava eu a achar tudo muito lindo, quando ouvi que Fernando Medina já tinha proposto ao governo que incluísse verbas para tal no Orçamento de Estado. Irritei-me imediatamente. Assim é fácil! Aposto que, nesses termos, qualquer presidente de câmara consegue fazer propostas fabulosas para a sua cidade. É preciso uma certa lata para vir com isto agora, quando, há dois anos, na altura em que foi anunciado que a Carris passava para a Câmara Municipal de Lisboa, mas que a sua dívida de centenas de milhões de euros ficava para todos os portugueses, foi-nos basicamente prometido que o Estado central não ia enterrar mais dinheiro nos transportes públicos de Lisboa. Diga-se, em abono da verdade, que eu estava predisposto para me irritar, dado que estava praticamente parado na auto-estrada, sob o calor de Grândola, por causa de um acidente. Nos dias seguintes, a irritação passou, mas a perplexidade com a lata do que Medina propôs, não.
Vamos por partes. Comecemos pela bondade da proposta de Medina. Eu vivo em Braga há 20 anos. Trabalhei em Lisboa menos de 6 meses (e morava em Corroios, na margem Sul). Portanto, objectivamente, a minha opinião sobre qual o melhor modo de melhorar a qualidade de vida dessa população é irrelevante, pelo que dou de barato que, para as pessoas dessa região, a melhor forma de se gastar umas boas dezenas de milhões de euros é essa.
Nos dias que se seguiram, houve um grande debate nas redes sociais sobre quem devia pagar esta política. Como é óbvio, a minha irritação decorre apenas de se chamar o país inteiro a pagar uma política de que apenas beneficia a Área Metropolitana de Lisboa (e, eventualmente, a Área Metropolitana do Porto). Ser o Orçamento do Estado a pagar esta política viola o bom senso por dois motivos.
Em primeiro, viola o princípio de subsidiariedade. Este princípio diz-nos que a decisão sobre uma dada escolha política deve ser da responsabilidade da área geográfica que internaliza quer os custos quer os benefícios de um determinado serviço público. Se, por exemplo, se discute uma rede de auto-estradas no país, então faz sentido que seja o país a pagá-las (e é bom lembrar que muitas das antigas SCUT são agora pagas pelos utilizadores). Os aeroportos e os portos servem a totalidade do país, pelo que um investimento nestas infra-estruturas pode e deve ser pago pelo Orçamento do Estado. Já reduzir brutalmente o valor dos passes na AML apenas beneficia os munícipes das câmaras envolvidas. Como é evidente, a proposta de Medina consiste em internalizar para a AML os benefícios dos passes subsidiados e externalizar para todos os portugueses o seu pagamento. Esta proposta é particularmente ofensiva quando, a nível nacional, o desinvestimento nos transportes (por exemplo, na ferrovia) é por demais notório.
Em segundo lugar, e isto é tão óbvio que é lamentável ter de ser dito, sendo a Área Metropolitana de Lisboa a região com o rendimento per capita mais elevado do país, é iníquo pedir ao resto do país que pague uma política que apenas beneficiará esta área. Vale a pena citar António Costa aquando do lançamento das obras no IP3: “Quando decidimos fazer esta obra, significa que estamos, simultaneamente, a decidir não fazer outra obra”. Aplicando a este caso, se se gastam dezenas de milhões de euros por ano em passes para a população da AML, haverá dezenas de milhões de euros por ano que não poderão ser gastos nas restantes regiões, mais pobres, do país.
A conclusão a tirar é simples. A proposta de Medida é, com certeza, excelente. Pelo menos, não vi ninguém a contestá-la na substância, pelo que deve ser financiada pelas câmaras da AML. Podem, por exemplo, aumentar o IMI. Caso haja câmaras que já estejam a cobrar a taxa máxima de IMI, em vez de pedirem ao Orçamento do Estado que pague, peçam antes uma moratória para poderem cobrar um IMI mais elevado. Alternativamente, pode ser financiada pela própria AML, que já recebe transferências do OE, bem como das autarquias envolvidas, para desenvolver políticas supramunicipais.
Antes de fechar o artigo, vale a pena discutir três argumentos que li muitas vezes por estes dias.
O primeiro consiste no seguinte: como os lisboetas (por lisboetas entenda-se aqui todos os habitantes na AML) também contribuem para o Orçamento de Estado, também é justo que sejam beneficiados por este. Este argumento não parece fazer muito sentido. Os lisboetas contribuem para o OE tal como todos os portugueses, pelo que não merecem qualquer tratamento preferencial. Ou seja, devem beneficiar do Orçamento do Estado da mesma forma que o resto do país (escolas, segurança social, saúde, infra-estruturas várias, etc.).
Segundo: a AML é um contribuinte líquido para o resto do país pelo que é justo que haja políticas específicas para a beneficiar. (Na verdade, eu não considero que seja verdade, mas, para efeitos deste artigo, não vou contestar a afirmação de que Lisboa subsidia o resto do país.) Este argumento é perfeitamente tolo. Confesso que nem percebo como é possível haver gente de esquerda a enunciá-lo. Seria o mesmo que afirmar que quem tem rendimentos mais elevados em Portugal merece tratamento preferencial nos serviços públicos, dado que paga mais por eles. Ou dizer que a Comissão Europeia deve dedicar parte dos fundos estruturais especificamente para a Alemanha, dado que esta é quem mais contribui para o orçamento da União Europeia. Evidentemente, o princípio da solidariedade entre regiões implica que as regiões mais ricas contribuam mais para o bolo comum. E a palavra-chave é comum. Não é contribuírem mais para o bolo comum para depois açambarcarem as melhores fatias.
Terceiro: dado que há políticas dirigidas especificamente a outras regiões concretas do país, também é justo que haja algumas desenhadas para benefício da Grande Lisboa. Este último argumento está errado por dois motivos. O primeiro já foi explicado: faz sentido haver transferências das regiões mais ricas para as mais pobres, mas não o contrário. O segundo é mais subtil. Salvo raras excepções, estas políticas que favorecem regiões específicas têm custos de eficiência relevantes. Já que estamos em início de ano lectivo, peguemos no exemplo da política de redução de vagas nas universidades públicas em Lisboa e Porto por contrapartida de um aumento no resto do país. Mesmo admitindo que globalmente esta política é boa, ela obriga a que vários alunos não fiquem nos cursos que querem. Vai haver alunos que deixam de entrar no Porto e que ficarão chateados com isso. Provavelmente, irão tentar ir para Braga ou Aveiro, cidades próximas, o que levará a que haja gente que queria entrar em Braga e em Aveiro e que deixa de ter vaga, tendo de ir para outra universidade. Ou seja, mesmo que globalmente os efeitos sejam benéficos, estas políticas têm ineficiências que prejudicam pessoas concretas. Se vamos ter políticas que beneficiam umas regiões e depois outras que beneficiam outras regiões para que todas fiquem beneficiadas, o efeito final é que nenhuma será beneficiada em relação às outras e todos ficaremos a pagar mais impostos. Ficam apenas as ineficiências e perdemos todos.